quarta-feira, 31 de março de 2021

"Vivemos uma onda de psicopatia no país", diz Contardo Calligaris

Crédito foto - Andréa Graiz/Agencia RBS

Publicado originalmente no site GAUCHAZH CLICR, em 28 de março de 2019

ENTREVISTA - "Vivemos uma onda de psicopatia no país", diz Contardo Calligaris

Psicanalista e escritor, que é um dos conferencistas do Fronteiras do Pensamento 2019, comenta o massacre de Suzano, sua visão sobre os jovens e a atualidade da psicanálise

Por Fábio Prikladnicki

Contardo Calligaris costuma dizer que não deseja uma vida feliz, mas uma vida interessante. Essa virou uma das ideias motivadoras do Fronteiras do Pensamento 2019, que começará no dia 13 de maio com o tema Sentidos da Vida – os pacotes de ingressos já estão à venda (veja detalhes ao final). Autor de livros como Hello, Brasil! e Outros Ensaios e Cartas a um Jovem Terapeuta, o psicanalista e escritor italiano radicado no Brasil será o palestrante de 21 de outubro. Entre seu trabalho em consultório e a atuação na arena pública, Calligaris se tornou um dos intelectuais mais influentes em atividade no Brasil. Na entrevista a seguir, concedida por telefone desde São Paulo, explica o que considera uma "onda de psicopatia" no país, que para ele não começou agora. Também fala sobre sua visão a respeito dos jovens, o que identifica de benéfico nos aplicativos de paquera e por que julga a psicanálise ainda relevante. E, claro, explica o que entende por "uma vida interessante".

Um dos motes do Fronteiras do pensamento neste ano é uma frase que o senhor costuma dizer: "Não quero ser feliz, quero ter uma vida interessante". O que é uma vida interessante? E seria possível ter as duas coisas?

É possível estar alegre e de bom humor tendo uma vida interessante? Talvez não em todos os momentos, porque uma vida interessante é uma vida que se permite viver intensamente até as coisas dolorosas e desagradáveis. Quando perguntam como eu gostaria de morrer, respondo que fazendo a experiência da minha morte. Gostaria que alguém fizesse comigo os cuidados paliativos, ou seja, me deixasse sem dor, mas perfeitamente acordado para eu me sentir morrendo. Isso é viver de uma maneira interessante, inclusive o momento da morte. Duvido que, a essa altura (na morte), alguém esteja feliz e alegre. Então, não sei se essas duas coisas, a felicidade e uma vida interessante, vão juntas. Ter a felicidade como propósito, do tipo "o que eu quero na vida é ser feliz", é a garantia de que você vai ter uma vida medíocre. Por uma razão simples. Dito com uma linguagem um pouco elevada, uma vida interessante é uma vida na imanência, não na transcendência. Ou seja, se o que você espera da sua vida é estar na transcendência, seja ela humana ou divina, se você vive na esperança do amanhã, se vive na esperança de ganhar na loteria, na esperança de ser recompensado depois da morte no além ou, ainda, na esperança de que sua vida de adolescente finalmente começará quando passar no vestibular, bom, essa vida não vai ser interessante. A esperança de ser feliz também é uma forma de transcendência. A única vida interessante é a vida que acontece aqui e agora. Não precisa ser épico, não precisa ser extraordinário, não precisa nada. Precisa da presença efetiva de quem está vivendo. O que faz a diferença é estar no momento. O momento pode ser o pãozinho com manteiga e café na padaria da esquina, pode ser escutar um paciente, ler um livro ou ver um seriado na TV. O importante é estar naquilo, e não na espera do que virá depois.

A única vida interessante é a vida que acontece aqui e agora. Não precisa ser épico, não precisa ser extraordinário, não precisa nada. Precisa da presença efetiva de quem está vivendo. CONTARDO CALLIGARIS

Conceitos idealizados, como felicidade ou amor perfeito e cara-metade, acabam nos atrapalhando?

Sem dúvida. Todas as formas de idealização, sobretudo de idealização antecipatória, nos atrapalham. Poucas horas atrás, tive uma sessão com uma paciente que estava com muito medo de estar se apaixonando por alguém porque isso eventualmente não daria certo e terminaria. Eu lhe fiz notar que essa é a estrutura da vida. Como ela está segura de que vai morrer (algum dia), então não deveria perder tempo vivendo? Realmente, a nossa relação com a idealização é dessa ordem. Ela alimenta medos, como o medo de viver alguma coisa que não dure. Não sei de onde veio essa ideia maluca de que a duração seria a garantia de qualquer coisa. Há relações que duram dois dias e são mais importantes e marcantes do que casamentos de 15 anos. É engraçado, porque não são ideias antigas. Quando os clássicos, os romanos e gregos, falam sobre o que nós traduzimos como "felicidade", aquilo tem um sentido muito diferente do nosso. Estão falando de uma certa sabedoria no uso, na administração de prazeres, afetos, amizades e amores. Não estão idealizando da mesma maneira que nós. Isso começou com a ideia do amor romântico, 200 anos atrás, e vai andando nessa direção.

Às vezes, as pessoas falam coisas como: "Tive um relacionamento de 10 anos, mas não deu certo". Então, podemos pensar que deu certo durante 10 anos.

Se foi bom durante 10 anos, é um recorde (risos).

O massacre da escola de Suzano chocou os brasileiros. Como se analisa a motivação desse tipo de crime, que estávamos vendo com mais frequência nos EUA?

Mais ou menos, porque no Brasil também acontece. Realengo (o massacre de Realengo, no Rio) existiu. Foi há oito anos. Certamente nos EUA são mais frequentes, até porque os incidentes que realmente chegam ao noticiário internacional são aqueles com pelo menos sete ou oito mortos. Se o cara tenta matar e fere dois, aquilo nem chega aos jornais brasileiros. Mas é frequente nos jornais americanos. Ao mesmo tempo, o Brasil de fato é atravessado por uma onda de – vou medir minhas palavras – psicopatia que é surpreendente mesmo para os padrões americanos.

Ela (a psicopatia) não está só nos homens políticos mais em vista do país. Está nas redes sociais, no cotidiano, no crime organizado, mas também no crime desorganizado. CONTARDO CALLIGARIS

O que é essa onda de psicopatia?

É a possibilidade de desconsiderar completamente a vida do outro. Um dos sinais evidentes de psicopatia é quando alguém, na adolescência, começa a massacrar pequenos animais, domésticos ou não, e a torturá-los com indiferença. O fato de que lhe falte uma dimensão de empatia com um ser vivo, mesmo que seja um inseto, ainda mais se for mamífero, é um péssimo sinal para o futuro. Veja a facilidade com a qual os nossos criminosos são capazes de botar fogo numa roda ao redor da cabeça de um repórter da Globo que subiu o morro, a facilidade com a qual alguém é ameaçado de morte, a facilidade com a qual alguém faz o elogio público do grande chefe da tortura durante a ditadura, a facilidade com que alguém deseja a morte de um oponente político por câncer, por exemplo. São sinais de psicopatia. Ela não está só nos homens políticos mais em vista do país. Está nas redes sociais, no cotidiano, no crime organizado, mas também no crime desorganizado. Pense na facilidade com que eu te mato mesmo se você me entrega o celular que eu pedi – e isso não vai me impedir de dormir. É uma onda de psicopatia realmente especial. Acho que deveríamos levar isso em conta como uma especificidade brasileira. A única coisa, aliás, que me faz ser a favor da reforma da lei do desarmamento é que, se realmente o país for psicopata, e declaradamente as relações nesse país forem psicopatas, eu quero me armar. Porque realmente não tem outra saída.

O senhor é a favor do direito de a população andar armada?

Não. Sou a favor de viver em um lugar onde não tenha arma nenhuma e ninguém mate ninguém. Ou então em um lugar onde tenha uma enorme quantidade de armas, como a Suíça, mas ninguém anda armado, e o número de assassinatos é extremamente modesto. Sou a favor disso. Quero dizer que, se eu vivo em um mundo habitado por psicopatas, que matam e podem desejar a minha morte, e mesmo promovê-la impunemente sem ter nenhuma barreira moral interna ao fazer isso, aí eu quero andar armado, porque senão vou ser morto no primeiro dia.

O que ocorre quando alguém vive na transcendência, ou seja, sempre esperando que sua vida comece no amanhã?

A transcendência pode ser qualquer coisa – Deus, o além, a espera do amanhã, o sol do futuro, a primavera do socialismo. Quando você coloca o foco de sua vida na transcendência, torna-se perigoso para você mesmo e para todos os outros. Essa história que parece tão benigna de "eu só quero ser feliz" na verdade é uma careta inquietante, porque é algo que promete qualquer coisa que farei para que isso se realize. No fundo, é a marca de que somos incapazes de viver em um instante. Como somos incapazes de aproveitar a vida que temos quando ela acontece, nos tornamos perigosos para os outros e para nós mesmos.

(A erotização da morte) É a marca do fascismo, porque o fascismo precisou tornar a morte erótica para poder mandar milhões de pessoas para a morte voluntariamente, e conseguiu. Mas essa ideia é tremendamente presente nos jovens. CONTARDO CALLIGARIS

De que forma?

Um traço importante da psicopatia é a erotização da morte. Quando vivemos a ideia de que o que importa será o amanhã, o que geralmente acontece é que começamos a dar à morte um valor extraordinário, como se fosse um momento no qual eu realmente viverei epicamente a minha vida. Não tem uma música fascista ou nazista que não faça alusão à morte como uma coisa boa ou maravilhosa. E a erotização da morte atravessa todos os últimos 70, 80 ou cem anos, é só fazer uma lista de todos os grupos que se tatuam com caveiras, por exemplo, como se isso fosse a marca de uma especial autenticidade ou glória, como se a morte fosse uma coisa que nos desse dignidade. Isso não passou. É a marca do fascismo, porque o fascismo precisou tornar a morte erótica para poder mandar milhões de pessoas para a morte voluntariamente, e conseguiu. Mas essa ideia é tremendamente presente nos jovens. É um plano homicida, mas também suicida. Do tipo: "Não vou conseguir ser nada do que gostaria. Não vou ser um herói de um game de tiro; não vou me parecer com nenhuma das personagens de novela ou seriado que vejo, mas vou encarnar a morte para os outros e eu mesmo vou go down in flames ("arder em chamas")". Essa erótica da morte, que aparece na caveira na cara de um dos atiradores (de Suzano, que postou uma foto com uma máscara de caveira), deve ser considerada importante.

Essa questão tem a ver com o tema da sua conferência no Fronteiras do Pensamento em outubro?

Não vou antecipar muito, mas vou usar essa fala para ter um discurso polêmico para mostrar que não vale a pena a gente acusar a idealização da propaganda, a idealização pela nossa ficção ou a idealização romântica do amor. Tudo isso é verdade, mas a doença, essa doença cujos fenômenos nós vemos se multiplicando agora, está na raiz da nossa cultura.

Da cultura brasileira?

Não. Da nossa cultura ocidental. A psicopatia brasileira é uma consequência. É certamente mais brasileira do que europeia, e existe também nos EUA. Mas os americanos encontraram uma solução. Poderiam ser um país totalmente psicopata, só que acabaram dando uma dignidade e uma força de presença ao braço armado da lei que impõe condições quase morais de existência. A polícia nos EUA não se confunde mais com o crime. Já aconteceu no passado, mas não se confunde mais. Se você está no Rio de Janeiro, vai ver que se confunde. Está difícil distinguir as duas coisas.

Se eu tivesse que falar de doença do século 21, estaria em algum lugar entre a perversão e a psicopatia. CONTARDO CALLIGARIS

Dizem que a histeria foi a doença do século 19, e a depressão, a do século 20. Caso o senhor concorde com essa premissa, qual é a doença do século 21?

Concordo em parte com a premissa. Não concordo muito com a ideia de que a depressão foi a grande doença do século 20. Tornou-se a grande doença do século 20 porque, a partir do fim do século, em 1990, os antidepressivos fizeram uma grana federal. Então, era necessário que houvesse muitos deprimidos para que aquilo tivesse função. Os laboratórios ficaram muito felizes. Mas se eu tivesse que falar de doença do século 21, estaria em algum lugar entre a perversão e a psicopatia.

Sobre a psicopatia o senhor já comentou. Por que a perversão?

A perversão, do meu ponto de vista, não tem nada a ver com o que chamamos genérica e impropriamente de perversões sexuais. A perversão é uma doença de grupo. Opera quando você desiste dos seus anseios, freios e limites individuais e passa a fazer parte de um grupo para o qual você delega todas as suas preocupações morais. Então, ninguém é perverso, as pessoas se tornam perversas no grupo. Se você lembra ou leu sobre o incêndio do índio Galdino, em Brasília, há mais de 20 anos (em 1997, quando o índio Galdino Jesus dos Santos morreu queimado por cinco jovens), nenhum daqueles guris individualmente teria feito uma cagada dessas. Agora, foi suficiente que fossem cinco para poder fazer isso e achar divertidíssimo. Essa é a perversão. A perversão não é tanto o fato de colocar fogo em um índio, é o fato de entrar em um grupo, mesmo que seja temporário ou de cinco pessoas... Pouco importa que sejam cinco amigos ou o Partido Nacional-Socialista, não faz diferença. É entrar em um grupo que te permita esquecer os freios morais básicos.

(A perversão) Opera quando você desiste dos seus anseios, freios e limites individuais e passa a fazer parte de um grupo para o qual você delega todas as suas preocupações morais. CONTARDO CALLIGARIS

Há um velho chavão de que os jovens são o futuro do Brasil. Talvez tenha a ver com aquela ideia de transcendência que o senhor criticou. qual é a probabilidade de os jovens transformarem alguma coisa no futuro?

Faz 15 anos que atendo só no Brasil, então não teria sentido comparar com os jovens americanos e ainda menos com os europeus. Mas continuo com a mesma crítica. Vejo os jovens de hoje desejando pequeno. A mãe de um dos dois atiradores de Suzano, que é uma mulher pobre e provavelmente se sacrificou para que o filho tivesse o que queria, disse: "Não entendo. Ele tinha tudo que queria". (A declaração literal foi: "Ele tinha internet, TV a cabo, tinha tudo. E o bobão faz isso?".) Achei essa frase tão tocante porque poderia ser dita em condições análogas por muitas mães. É como se a gente estivesse sempre no primeiro ano de vida: quando o bebê chora, seja porque não está gostando do sol ou porque o barulho é muito alto, a única coisa que lhe é dada em resposta é comida. Mas é engraçado como esse modelo de alguma forma continua na relação entre pais e filhos. Como somos todos, e não só essa mulher, relativamente surdos ao que as crianças pedem e sempre lhe devolvemos algo que no fundo nunca é tudo o que eles queriam, e às vezes não tem nada a ver com o que queriam. Respondendo à pergunta: não sou otimista sobre o futuro do Brasil, pelo menos não a partir dos jovens que eu vejo em geral. Acho que eles são mal-educados, e não no sentido de não saberem usar a faca na mão direita, isso seria o de menos, mas no sentido de que não aprendem o suficiente na escola. Acho que têm pouco gosto pelo esforço de se formar, crescer e trabalhar. Não sou otimista.

Seria porque os jovens, pelo menos os de classe média, têm uma situação muito mais confortável do que tiveram seus pais? Os pais sabem como é difícil construir uma vida e querem poupar os filhos disso tudo?

Sim. Grande parte das classes médias começou a querer facilitar a vida dos filhos além da conta. Os pais da classe média paulistana, e suponho que não seja diferente de Porto Alegre, ficam horrorizados se o professor supõe que os alunos estudem em casa duas ou três horas por dia. São capazes de telefonar para a escola indignados porque as crianças vão cansar. Não vão poder sair para a rua e se divertir? Eles têm uma relação doentia quando o esforço aparece primeiro. Os pais não querem que os filhos se esforcem. Agora, claro, há algumas exceções.

Os pais não querem que os filhos se esforcem. Agora, claro, há algumas exceções. CONTARDO CALLIGARIS

A falta de ambição dos jovens seria, nesse caso, reflexo da falta de ambição dos pais?

Sim, claro.

Boa parte da sociedade brasileira está endividada e trabalha contra a máquina. Tirando a parte mais pobre da população, que tem pouca margem, esse problema de poupança do brasileiro teria a ver com a dificuldade em adiar o prazer, ou seja, a necessidade de consumir bens imediatamente e não economizar?

Sem dúvida tem isso, mas essa não é só uma questão brasileira. A especificidade do Brasil é que se trata de um lugar onde não há crédito – há usura. É diferente. Nossos amigos banqueiros vão tentar me convencer de todas as maneiras possíveis do contrário, mas não existe um nível de inadimplência que justifique esse juro ao consumo ou ao crédito pessoal no Brasil. Faça uma experiência. Coloque, sei lá, R$ 50 mil de investimento em um fundo do seu banco. Daí, pergunte ao banco se pode dar esse fundo na garantia de um empréstimo do mesmo valor. Você não vai poder tocar nesse dinheiro, que é seu, mas fica nas mãos do banco, até você ter pago o empréstimo. Essa operação, em qualquer lugar do mundo, tem um juro ridículo, porque a garantia é absoluta. No Brasil, não. Tem um juro abusivo. Então, o problema no Brasil é que as pessoas que consomem dessa maneira são vítimas de um assalto.

A vigilância e o julgamento que vemos nas redes sociais se refletem em angústias no consultório?

Um pouco, mas menos do que eu imaginaria, e talvez menos do que alguns anos atrás. Ouço muito menos os meus pacientes falarem do Facebook deles do que alguns anos atrás. Claro que foi um tempo extraordinário que ainda pode ser analisado como o momento em que todo mundo criou um ou vários avatares, e isso se tornou um tremendo trabalho da imaginação de cada um. Digo avatar no sentido de ser aquela figura que você quer mostrar aos outros. Aquilo teve um efeito tremendo sobre a vida de cada um. Ainda lembro de crianças nos anos 1980 ou 1990, no começo dos jogos de RPG. Quando o avatar de um menino morria em um RPG, aquilo era considerado quase um risco de suicídio do ponto de vista clínico. Era importante ficar de olho no menino, recomendação da própria American Psychological Association. Mas acho que esse tempo passou. Estou vendo um efeito, por outro lado, interessantíssimo, extremamente positivo das redes sociais. Um número de pacientes, sobretudo mulheres, hoje acessam diariamente o Tinder e têm encontros amorosos que podem se transformar em outra coisa, temporária ou não, graças aos aplicativos de paquera. Isso acho altamente positivo. Pense em uma mulher separada há sete anos, sozinha, sem conhecer ninguém, à mercê das amigas que quem sabe lhe apresentarão um amigo do marido, que geralmente é alguém que sobrou no mundo. Ela pode entrar em um aplicativo, sair hoje à noite e transar. Não necessariamente vai ser a transa do século, e às vezes até é. Isso eu acho que foi uma melhora significativa.

É possível que um dia a psicanálise mude de nome, mude também alguns dos fortes teóricos nos quais se baseia. Agora, o dispositivo acho que vai durar. CONTARDO CALLIGARIS

Fazendo uma provocação: a psicanálise ainda é relevante hoje porque é uma boa visão de mundo ou porque é uma boa ciência?

(Risos.) Acho que é um bom dispositivo. Não é nem uma visão de mundo, nem propriamente uma ciência. É um bom dispositivo, que tem mais ou menos 3 mil anos. Esse dispositivo da cultura ocidental, que provavelmente acontece também em culturas orientais, é que precisamos de alguém que não seja nem um amigo, nem um parente, para quem possamos falar de nós na esperança de que esse alguém nos diga algo no que nós dissemos que nós mesmos não escutamos. Esse dispositivo tem 3 mil anos. Passou por uma série de figuras que vão desde o confessor até o conselheiro espiritual, até o "amigo" do bar – amigo entre aspas, porque justamente é melhor que não seja um amigo. É possível que um dia a psicanálise mude de nome, mude também alguns dos fortes teóricos nos quais se baseia. Agora, o dispositivo acho que vai durar.

Como o senhor analisa a psique do presidente Jair Bolsonaro?

(Risos.) Adoraria se ele viesse me ver, talvez eu pudesse analisá-lo. Nesse caso, infelizmente, não diria absolutamente nada para você... Não tenho elementos para me aventurar a fazer isso. Ele realmente me desconcerta. A única coisa em que às vezes eu penso é que sua vitória foi para ele mesmo inesperada. O que acho mais surpreendente, mas também deve ser um campo de enorme dificuldade para ele, é a relação com esses três filhos, que me assustam um pouco. Me assustam sobretudo porque normalmente acho que a família não foi criada para ser um lugar em que todos concordam com todos. Ao contrário, a família, como cada um sabe, foi inventada para ser um lugar em que todo mundo discorda. Por isso, ela eventualmente é interessante e educativa. Quando vejo essa família, não são todos, mas pelo menos os três irmãos parecem uma espécie de coalizão partidária ao redor do pai. Isso me assusta. Mas não vou me aventurar a analisá-lo.

Texto e imagem reproduzidos do site: gauchazh.clicrbs.com.br

"Há uma espécie de necessidade de convivência que não nos faz bem."

Publicado originalmente no site FRONTEIRAS, em 21 de setembro de 2015

Contardo Calligaris: "Há uma espécie de necessidade de convivência que não nos faz bem."

Por Marcos Dias (A Tarde) 

Precisa crescer? Precisa ser melhor? Precisa evoluir? Segundo Contardo Calligaris, a necessidade de aprender a conviver com os outros pode ter se tornado mais uma causa para culpas e frustrações, assim como a necessidade de ser feliz, ideal para o qual ele também faz ressalvas.

Em entrevista, Calligaris não questiona apenas a necessidade de saber conviver, mas a necessidade de se conviver bem, defendendo até que um certo toque de tensão pode tornar as relações mais interessantes. Concordando ou não, a fala de Contardo Calligaris busca perturbar e libertar ao mesmo tempo.

O que mais lhe interessa em relação ao tema da convivência?

Contardo Calligaris: Minha primeira pergunta para mim mesmo é por que seria bom viver juntos? E a questão talvez mais interessante: de onde viria de cada um de nós, ou pelo menos de quase todos, inclusive dos que vivem felizes relativamente sozinhos, a sensação de que seria muito mais certo sermos capazes de conviver com os outros? Esta seria um pouco a minha pergunta prévia, ou seja, em termos bem psicanálise dos anos 30, a ideia de que viver juntos é uma espécie de imperativo superegoico que produz em cada um de nós uma série de consequências, aliás, não necessariamente das melhores, ou seja, culpas, inibições, sentimento de fracasso, inadequação e companhia.

Eu acho que a força desse imperativo na nossa sociedade, sobretudo a partir dos ultimos 40, 50 anos, é extraordinária. Porque além do seu sentido mais genericamente político, de "aprofundar a convivência democrática", tudo isso entre aspas, por favor, também do ponto de vista da convivência cotidiana, a ideia de que a gente deveria estar pelo menos desde os anos 1970 em uma espécie de aprofundamento contínuo da vida dividida, da vida a dois, do casal, ou qualquer outro tipo de convivência que seja, esta ideia está não só completamente presente, mas constantemente mais presente.

Freud disse, num texto de 1930, que "a intenção de que o homem seja 'feliz' não se acha no plano da 'Criação'". E que o sofrer nos ameça pela finitude do corpo, pelas catástrofes da natureza e, tanto quanto, pelas relações com os outros seres humanos. Estamos vivendo um momento particularmente urgente em relação à convivência?

Contardo Calligaris: Na minha experiência clínica, comparada com o clima dos anos 70 e 80, por exemplo, e mesmo em alguma medida nos anos 90, acho que a grande dificuldade da maioria das pessoas que me consulta não é encontrar alguém, usando essa expressão batida, mas a grande dificuldade é se separar.

O tempo médio que um casal leva para se separar enquanto ambos vivem uma vida reconhecidamente horrorosa juntos é de três a cinco anos. Isso não é o tempo do divórcio até a anulação do casamento - o papa Francisco decidiu que pode acontecer em até 45 dias. O problema é chegar até o pedido! Isso pode levar de três a cinco anos, o que é engraçado, porque dá a impressão que as pessoas devem pensar que eles têm uma vida realmente ilimitada, contrariamente à finitude de que falava Freud.

Em última instância, isso significa que a ideia de que a convivência ou o fim da convivência seja um fracasso que o sujeito ou sujeitos não querem encarar é uma ideia justa e é muito forte. Não basta alguém dizer 'eu sou muito infeliz no meu casamento, então seria bom que eu me separasse', não, o problema não é que vou perder o outro, o problema é que eu vou perder alguma coisa que vai na direção da realização de um ideal de convivência, que pelo menos era a minha tentativa de realizá-lo.

Acho que não vivemos um momento particularmente urgente, não no sentido em que teríamos urgentemente que começar a conviver, mas é urgente notar que há uma espécie de necessidade de convivência que não nos faz bem.

Há quem diga que o Brasil está dividido ideologicamente. A política tornou-se uma paixão nacional, no sentido de não haver racionalidade nesse debate e muito mais agressões?

Contardo Calligaris: Não sei se nesse tipo de debate a racionalidade alguma vez realmente funcionou, porque o espírito que funciona é muito mais o espírito da torcida de futebol do que o interesse político. O espírito da torcida de futebol é que você é do Corinthians e eu sou do Palmeiras e, a partir disso, discutir os méritos recíprocos, a qualidade dos jogadores, ou se quem jogou melhor no último jogo e se merecia vencer, é totalmente impossível.

O que tomou conta e o que toma conta muito frequentemente do político é, na verdade, um espírito de torcida. Mas isso não é um fenômeno só brasileiro. Foi um fenômeno norte-americano bastante forte ao longo da gestão Obama, que a gente chama de uma polarização da vida política. Mas não é tanto uma polarização de opiniões e posições, é um espírito de torcida.

É engraçado, porque alguém poderia dizer que isso é um sucesso da convivência, porque a convivência, afinal, não precisa ser universal; parece que dentro de cada grupo, aparentemente, todo mundo concorda ao redor dos mesmos "grandes princípios", entre aspas, que geralmente são miseráveis, mas então aí a convivência estaria se dando muito bem. Aliás, isso seria instrutivo até para se perguntar se é sempre necessariamente tão bom conviver, porque os membros da mesma torcida convivem muito bem.

Recentemente, você disse que a falta de interesse pelo mundo e pelos outros é o que pode acontecer de pior a alguém. Seria uma negação da convivência?

Contardo Calligaris: É muito facilmente assim que os outros percebem a posição de alguém que perdeu o interesse pelo mundo e pelos outros, o que significa também por ele mesmo. Porque alguém realmente deprimido nesse sentido, aos olhos dos outros é quase agressivo.

A accidia, como era chamada na Idade Média - enfim, a tristeza, seria na tradução exata -, era um dos pecados capitais, e era considerado o mais grave por ser um pecado contra Deus, porque significava que você não apreciava o maior presente de Deus que era a criação. Então, não é estranho que a gente ache que, quem ao redor de nós se deprime, de alguma forma está pecando contra nós. O Deus cristão já pensou nisso.

Um dos versos de Chico Buarque, em Estação Derradeira, fala em "cidadãos inteiramente loucos com carradas de razão". Considera algum aspecto saudável na depressão?

Contardo Calligaris: Eu acho que a gente tem todo o direito do mundo de estar triste. Até tem várias pessoas para quem é absolutamente inevitável ter uma espécie de pano de fundo melancólico sempre na vida. Tem uma série de razões que vem da infância, da vida de cada um de nós.

Vou dizer isso de maneira metafórica, claro, como se cada um de nós tivesse uma tonalidade cromática, uma cor que é dele, e há pessoas que têm uma tonalidade cromática mais triste por mil razões. Sei lá, se a sua mãe se suicidou quando você tinha seis anos, existe o fato que você tem razão de pensar que o seu nascimento não foi uma razão suficiente para ela continuar vivendo. Isso dá uma tonalidade ao mundo, à sua experiência do mundo que é inalterável, essa vai ser a sua tonalidade. É só um exemplo, poderia dar outros.

Mas tem pessoas para quem uma certa melancolia, um certo spleen, como dizem os românticos, é a relação que eles têm com o mundo. É certo que assim seja e tem certas pessoas que acham que a tristeza é a melhor relação possível com o mundo. Por exemplo, os poetas românticos. Se você vai falar para Baudelaire: "Tente ser feliz a cada dia", ele vai te mandar à merda. Ou Giacomo Leopardi... Para eles, a tristeza é a fonte principal da sua visão do mundo, da sua inspiração, do que torna o mundo interessante aos olhos deles.

Nós estamos muito mais numa época que faz da alegria uma espécie de valor, um valor heurístico. Eu tenho dúvida quanto a isso, volto ao que dizia Freud do começo, até sublinhando, que talvez a gente tenha mais acesso à verdade do mundo - não digo pela depressão, porque a depressão diz respeito a ficar parado sem pensar em absolutamente nada, a depressão clínica -, mas talvez tenha mais acesso à verdade do mundo pelo viés da tristeza do que pelo viés da alegria, ou sobretudo de uma alegria um pouco maníaca, tipo aquela coisa, sabe, "vamos lá, sejamos felizes".

Texto e imagem reproduzidos do site: fronteiras.com

Escritor e psicanalista Contardo Calligaris morre aos 72 anos

Publicado originalmente no site FRONTEIRAS, em 30 de março de 2021

Escritor e psicanalista Contardo Calligaris morre aos 72 anos

Nesta terça-feira (30), faleceu o escritor e psicanalista Contardo Calligaris, com 72 anos de idade. O dramaturgo italiano tratava um câncer e estava internado no Albert Einstein, em São Paulo. 

Conferencista do Fronteiras do Pensamento 2019, Calligaris refletia sobre a existência humana e abordava questões da adolescência e das angústias desencadeadas pelos desafios contemporâneos. O escritor desenvolveu seu trabalho ancorado em importantes temas como cultura e psicanálise, introduzindo o debate sobre a obrigatoriedade da felicidade, do gozo, da beleza e dos excessos.

Calligaris era colunista no jornal Folha de S.Paulo e atendia como psicólogo nos seus consultórios em São Paulo e Nova York. Sua formação teve início na Suíça, estudando Epistemologia Genética. Na sequência estudou Letras, e fez doutorado em Semiologia com um dos mais reconhecidos linguistas, Roland Barthes, e em Psicanálise. Em 1985, veio ao Brasil lançar seu primeiro livro de psicanálise, “Hipótese sobre o fantasma”.

Texto, imagem e vídeo reproduzidos dos sites: fronteiras.com e youtube.com

sexta-feira, 29 de janeiro de 2021

Para Que Serve O Autoconhecimento E Como Buscá-Lo?

Publicado originalmente no PORTAL RAIZES, em 26 de janeiro de 2021

Para Que Serve O Autoconhecimento E Como Buscá-Lo?
Por Clara Dawn

A coisa mais difícil nesta Terra cheia de estigmas, é ter a ousadia de ser quem realmente se é, e consequentemente, aceitar o outro exatamente como ele é. Você consegue dizer quem é você, ou você só se reconhece como o mundo diz que você deve ser?

O que é autoconhecimento?

Autoconhecimento significa o hábito de prestar atenção à maneira como você pensa, sente e se comporta, como explica as coisas para si mesmo e com compreende o mundo ao seu redor. Ter autoconhecimento significa que você tem uma compreensão nítida de sua personalidade, incluindo seus pontos fortes e fracos, seus pensamentos e crenças, suas emoções e suas motivações.

Significa compreender suas próprias emoções e humores. Significa prestar atenção em como tendemos a agir e nos comportar em certas situações. Quais são nossas respostas padrão para as coisas? Quais são nossos hábitos e tendências? Em suma, autoconhecimento nada mais é do que a análise psicossocial de si mesmo.

Para que serve a busca pelo autoconhecimento?

Em primeiro lugar, o autoconhecimento não é para que você fique melhor para convívio com outro, para o outro e com o outro. O autoconhecimento é para que você fique melhor consigo mesmo. Mesmo que isso signifique ficar ‘ruim’ aos olhos dos outros.

Ser quem você é, é o máximo que se pode ser. Mas há muitos encargos para ser quem você é. Ignorar a validação alheia é o maior deles. Por isso, nos esforçamos demasiadamente para sermos somente aquilo que os outros esperam de nós. E isso é ótimo! Para os outros, é claro. Seja quem você nasceu para ser! Você é mais e não menos.

Uma pessoa que pratica o autoconhecimento:

decide praticar o amor próprio e priorizar a sua saúde mental e emocional;

desenvolve a inteligência emocional (identificar suas emoções de acordo com diversas circunstâncias);

desenvolve a autorregulação (aprende regular suas emoções de acordo com diversas circunstâncias);

desenvolve com tranquilidade a autocrítica e aprende a potencializar seus pontos positivos e neutralizar os negativos, para o melhor convívio consigo e com os outros;

desenvolve a autoconfiança e por isso melhora significativamente suas relações afetivas e profissionais;

melhora potencialmente a qualidade do humor;

desenvolve uma comunicação mais eficaz;

não tem receio de mostrar suas habilidades, tampouco suas inabilidades.

10 maneiras de praticar o autoconhecimento

É importante praticar a busca pelo autoconhecimento. Porque depois que você descobre quem você é essencialmente, você pode enfim fazer grandes mudanças: energizando os seus pontos positivos e esmaecendo os negativos com o intuito de tornar confortável o convívio consigo mesmo e com seus próximos. Coisa muito desconfortável é, tentar em vão, ser a pessoa que o outro espera que você seja em detrimento de ser quem você é. Ocorre, muitas vezes, em casos assim, a frustração de não poder ser quem você, e tampouco ser o que outro espera que você seja.

O autoconhecimento é um processo bastante demorado, porque implica no quanto de verdade sobre si mesmo, você consegue suportar. Pensando numa forma de auxiliar nesse processo, como psicanalista, elaborei estas 10 maneiras  de praticar o autoconhecimento. Confira:

1 – Deseje profundamente a busca pelo autoconhecimento

Deseje profundamente a busca pelo autoconhecimento e então comece a trilhar esse complexo caminho, fazendo, a princípio, uma bateria de exames com um clínico geral. Conheça o seu corpo, as suas heranças genéticas, o histórico de saúde mental. De posse dessas informações você poderá cuidar de sua saúde integral com responsabilidade: aceitando, compreendendo e se amando exatamente como é. Isso lhe dará o pontapé inicial para descobrir quem é você física, biológica e mentalmente.

2 – Comece um tratamento com uma nutricionista e com uma terapeuta

Comece um tratamento com uma nutricionista e com uma terapeuta: se há duas pessoas que necessitam estar sempre presentes em nossas vidas, são esses profissionais da alimentação e da análise de nós mesmos. A nossa alimentação influencia os sistemas digestório, articular, circulatório, muscular, linfático… Todo o corpo sofre com a má alimentação, e com isso, o nosso comportamento físico, emocional, social… se altera significativamente. A mesma preocupação com aquilo que comemos, precisa ser conduzida à todas as áreas e aspectos da vida, e é aqui que entra o trabalho do terapeuta. É como tratar uma queimadura. Uma queimadura só sara de dentro para fora. Não é fácil, é difícil e dói. Mas só dói até não doer mais.

3 – Faça longas caminhadas sozinho e dedique tempo ao exercício da contemplação da natureza

Faça longas caminhadas sozinho e dedique tempo ao exercício da contemplação da natureza. Enquanto você caminha sozinho com os seus pensamentos, sozinho com a sua respiração, sozinho com o seu coração, sozinho com a sua autoanálise, sozinho com o seu Poder Superior… você vai se conhecendo, vai meditando em suas atitudes, palavras e vivências interpessoais. Jesus, deu um conselho para o alívio da ansiedade: olhai os lírios do campo.

4 – Faça um recordatório de suas descobertas sobre si, e aceite a opinião de alguém em quem confia

Faça um bloco de notas onde possa anotar suas reflexões acerca de sua caminhada em busca do autoconhecimento. É importante também que esteja aberta á opinião de alguém em quem confia e sabe que opinará sem julgamentos.

5 – Explore novas vivências

Explore novas vivências, especialmente: a leitura de romances de ficção, a escrita, a pintura, a dança, o canto, a culinária… Se obrigue a praticar uma atividade física: ioga, musculação, natação, corrida… Essas vivências nos conduzem a lugares incríveis em nós mesmos. Essas vivências resolvem um sem número de desordens emocionais.

6 – Pratique o ‘antes o outro aborrecido porque eu disse não, do que eu aborrecido por ter dito sim’

A permissão da prática do amor próprio é fundamental para o processo de autocura e autoconhecimento. Quando você se ama, se prioriza, se respeita, se valoriza, você indica aos outros a maneira como deve ser tratado. E o contrário também, pois as pessoas nos dão o valor que a gente se dá. Praticar o ‘antes o outro aborrecido do que eu’, não é egoísmo. É amor próprio. Afinal de contas, quem estará com você por todos os dias da sua existência, cuidando de você, lhe amando, lhe respeitando e lhe valorizando, senão você mesmo?

7 – Aceite seus erros e se responsabilize por eles

Aceite seus erros e se responsabilize por eles, mas não transforme o sofrimento e a culpa em dor remanescente. O erro é mais útil do que o acerto. Pois é com o erro que buscamos melhorias, evolução, e o preenchimento dos vazios existências. Num mundo onde não há vivências com tédio, com os erros e as frustrações, nada muda. Nada avance. Tudo fenece rapidamente.

8 – Não faça da culpa uma âncora: se perdoe, peça perdão, perdoe

Não faça da culpa uma âncora: se perdoe, peça perdão, perdoe. Existe uma diferença entre o perdão religioso e o perdão terapêutico. O perdão religioso sugere que você perdoe quem lhe ofendeu setenta vezes sete; o perdão terapêutico sugere que você se perdoe por ter vivido aquela situação, que você compreenda, aceite e ressignifique o que lhe aconteceu. Reconheça seus erros e peça perdão. Entretanto, respeite a decisão do outro caso ele não queira lhe perdoar. Da mesma maneira, você tem todo o direito de não perdoar quem teve a chance de não lhe ferir, mas feriu. Por outro lado, não faça da culpa ou da falta de perdão, âncoras capazes de mantê-lo afogado em mágoas. Dê tempo ao tempo, meio passo, meio passo. Como disse Guimarães Rosa, é só aos poucos que o escuro fica claro.

9 – Pratique a serenidade e também a raiva produtiva

Pratique a serenidade e também a raiva produtiva: a serenidade é aquela coisa toda poderosa que abala rígidas estruturas. A prática da serenidade é importante para o equilíbrio e a inteligência de nossas emoções, bem como para o exercício da paz de espírito. E não seria a paz de espírito, felicidade em meio as tormentas da vida? Mas não se deve isentar o espírito das visitas de um furação. Porque não se conquista o direito de ser quem você é, essa ‘violência social’, com resignação silente. Se quiser pertencer a si mesmo, se quiser chegar inteiro do outro lado do rio, precisará correr sobre pedras e jacarés, e não pisar manso.

10 – Tenha coragem de aceitar e assumir quem você é

A coisa mais difícil nesta Terra cheia de estigmas, é ter a ousadia de ser quem realmente se é, e consequentemente, aceitar o outro exatamente como ele é.

Tornar-se quem se é, não é uma busca racional. É um desejo do espirito. O espírito é o inconsciente, e o inconsciente é a cura por intermédio do quanto de verdade sobre si mesmo você é capaz de suportar. Não é nada fácil despertar o inconsciente. Não é nada fácil descobrir, compreender, aceitar e ressignificar as verdades sobre si mesmo. Mas o inconsciente não pode ser silenciado, ele fala por intermédio de sintomas que se apresentam como doenças emocionais, mentais e físicas. Esse encontro consigo mesmo só pode acontecer de modo racional, em análise. Entretanto, uma vez confrontado com as verdades sobre si mesmo, o analisando pode enfrentá-las – consciente – ou fugir delas inconscientemente. Você consegue dizer quem é você, ou só se reconhece como o mundo diz que você deve ser?

Texto de Clara Dawn, escritora, pesquisadora, palestrante, psicanalista, psicopedagoga, presidente do Instituto de Pesquisas Arthur Miranda em prevenção à drogadição, aos transtornos mentais e ao suicídio na infância e na adolescência.

Texto e imagem reproduzidos do site: portalraizes.com

quarta-feira, 18 de novembro de 2020

5 Características Das Pessoas Altamente Sensíveis, por Elaine N. Aron

Publicação compartilhada do site PORTAL RAÍZES, de 10 de novembro de 2020

5 Características Das Pessoas Altamente Sensíveis 

Com Elaine N. Aron

Você presta atenção em detalhes que ninguém parece notar? Você consegue contemplar instantes e belezas que para os demais é estupidez? Você se sente profundamente impactado com o sofrimento alheio? Você não encontra prazer e felicidade onde a maioria parece buscar? Odores fortes, muito barulho, muita gente, surpresas… são coisas nas quais você não gosta de lidar?

A alta sensibilidade não tem cura. Você nasce com ela, com essa peculiaridade, com esse característica que já pode ser claramente vista desde que é uma criança muito pequena. Suas perguntas, sua intuição, sua tendência perfeccionista, o seu limiar de dor física, o seu desconforto com luzes ou odores fortes, sua vulnerabilidade emocional. Não é fácil viver com essa característica. No entanto, uma vez que você reconhece o que ela é o que você é, então poderá se assumir como tal e exigir que seja respeitado como tal, tendo a total liberdade para trabalhar positivamente essa característica de modo a ter saúde integral e uma boa vida.

Elaine N. Aron, psicóloga clínica, pesquisadora e autora de vários livros, dentre eles “The Highly Sensitive Person” (A pessoa altamente sensível), explica algumas características das pessoas altamente sensíveis, pensativas, empáticas e emocionalmente reativas. Certamente, existem extremos de emoções que são considerados transtornos do humor, por exemplo, e devem ser tratados com um profissional da saúde mental, mas falando aqui apenas de PAS – Pessoas Altamente Sensíveis.

Veja 5 características das pessoas que são sensíveis no grau mais elevado. As Pessoas Altamente Sensíveis são:

1 – Inteligentes emocionalmente

Desde a infância, a criança com alta sensibilidade vai perceber aspectos de sua vida diária que oferecerão um mix de angústia, contradição e curiosidade fascinante. Seus olhos irão captar aspectos que nem mesmo os adultos levam em conta. Aquele olhar de frustração em seus professores, a expressão preocupada da mãe… Ela é capaz de perceber coisas que as outras crianças não percebem, e, portanto, desde cedo ela apreende o conhecimento de que vida é contraditória, e exatamente por isso, começa a desenvolver mentalmente habilidade cognitivas para lidar com a frustração, o medo, o abandono, o luto, as decepções afetivas…E ainda que sofra profundamente cada palavra ou gestos negativos em relação a si mesma, e demonstre com isso fragilidade e vulnerabilidade, no fundo, sabe que dará conta de passar por cima.

2 – São amantes da solidão

 Pessoas altamente sensíveis encontram prazer em seus momentos de solidão. São ansiosas para realizar suas tarefas, seus hobbies. São pessoas criativas que gostam de música, leitura … E, embora isso não signifique que não desfrutam da companhia dos outros, é só na solidão que encontram mais satisfação. Pessoas altamente sensíveis não têm medo da solidão. É nesses momentos que podem se conectar mais de perto com elas mesmas, com seus pensamentos, livre de apegos, gravatas e olhos curiosos.

3 – Se doam à existência com coração empático

Alta sensibilidade é viver do coração. É ser empático em tempo integral e por isso é solicito para com os outros: os próximos e também os desconhecidos. Ninguém vive mais intensamente o amor, ninguém sente mais prazer com pequenos gestos diários, como a amizade, carinho do que as pessoas altamente sensíveis.  Não apenas as relações afetivas, o carinho no cotidiano, ou o simples ato de experimentar a beleza de uma pintura, uma paisagem ou uma melodia, é uma experiência intensa para uma pessoa altamente sensível. As dores e também as belezas de existir são as molas que movem o seu coração.

4 – Se dedicam ao crescimento interior

Uma vez que a pessoa altamente sensível descobre o seu próprio eu e suas habilidades positivas, ela encontra o seu equilíbrio e promova o crescimento pessoal. Ela sabe que  é um ser único e múltiplo ao mesmo tempo, sabe que sua sensibilidade não é um defeito a ser corrigido, e sim, um traça a ser aceito. Ela o aceita, o compreende e o ressignifica a seu favor e a favor daqueles que ela ama.

5 – Não perde tempo tentando se adaptar à cultura global

As sociedades de todos os tempos sempre exigiram padrões de aceitação e a maioria das pessoas segue a multidão, vai na onda, embarca nos ismos de um grupo e faz malabares para ser aceita e reconhecida ali. As pessoas altamente sensíveis não têm necessidade de se adaptarem as regras das sociedades, pois elas não se sentem pertencer a nenhuma delas. Jenna Avery, uma “treinadora de vida para almas sensíveis”, aconselha as pessoas a aceitarem ou até mesmo buscarem estar “fora de sincronia” com a sociedade dominante, e se desligarem dos julgamentos dos outros, pois é exatamente a não aceitação das diferenças que faz do mundo um lugar horrível.

Texto e imagem reproduzidos do site: portalraizes.com

segunda-feira, 20 de abril de 2020

Como identificar se você está com coronavírus ou ansiedade

SAM THOMAS VIA GETTY IMAGES

Publicado originalmente no site [huffpostbrasil.com], em 16 de abril de 2020  

Como identificar se você está com coronavírus ou sofrendo crise de ansiedade

Sintomas como falta de ar, peito apertado e dor de cabeça podem ocorrer com estresse e com a covid-19. Veja como saber se é uma coisa ou a outra.

Por Stephanie Barnes

Vivemos tempos inusitados. Com o novo coronavírus continuando a se alastrar pelo mundo, muitos de nós estamos atolados em um ciclo de ansiedade e medo. Aquele aperto em seu peito e aquela falta de ar são apenas sinais de seu corpo reagindo à incerteza reinante, ou será que você contraiu a covid-19?

Alguns dos sintomas associados à ansiedade e à covid-19 podem coincidir. Por essa razão, no momento em que você sente que está perdendo o controle, pode ser difícil saber ao certo o que você está tendo de fato. Veja o que é preciso saber.

Sintomas de ansiedade vs. sintomas de covid-19

“Existem alguns sintomas da covid-19 que coincidem com sintomas de ansiedade: falta de ar, aperto no peito, perda de apetite e diarreia”, disse Kate Denniston, médica naturopata da Los Angeles Integrative Health.

Embora a dificuldade respiratória seja um dos principais sintomas conhecidos tanto da ansiedade quanto da covid-19, há algumas coisas essenciais que ajudarão você a diferenciar entre as duas coisas. Para entender melhor o que você está enfrentando, a sugestão de Denniston é que você tire alguns momentos para se centrar em si mesmo e tentar identificar no que estava pensando e o que estava fazendo antes de seus sintomas aparecerem.

“Talvez você estivesse prestando atenção às notícias, aos problemas financeiros ou estivesse preocupado em encontrar os produtos de supermercado que você precisa”, ela disse. “Você tem um histórico passado de ansiedade? Se sim, compare o que está sentindo agora com a ansiedade que já sentiu no corpo em outras ocasiões.”

Se você conseguiu se acalmar nesses poucos minutos e voltar para um padrão respiratório regular, talvez não esteja lidando com o coronavírus.

“A falta de ar ligada à covid-19 é progressiva e, sem assistência médica, pode se agravar em questão de horas a dias, até colocar a vida do paciente em risco”, disse Sarah Johnson, diretora médica da Landmark Recovery.

Outro autoexame rápido que você pode fazer é tentar falar, recomendou Anthony Freire, diretor clínico e fundador do Soho Center for Mental Health Counseling, em Nova York. Freire, cujo médico acredita que ele contraiu o vírus e se recuperou, disse que o mais difícil foi enfrentar a dificuldade respiratória.

“A sensação é igual à ansiedade. A garganta fecha, você não consegue inspirar ar suficiente, sua respiração fica superficial”, ele disse. “Se você estiver sentindo falta de ar, telefone a alguém. Se conseguir falar e a pessoa conseguir entender o que você diz, e você não estiver ofegante, então o mais provável é que seja ansiedade.”

Outra maneira de diferenciar entre a covid-19 e condições com sintomas semelhantes inclui a presença de febre persistente, geralmente superior a 37,8 graus centígrados.

“Com a covid, você pode apresentar outros sintomas também que não estarão presentes em um ataque de ansiedade: tosse seca, dores diversas, cansaço e congestão”, disse a terapeuta Ibinye Osibodu-Onyali, de Murrieta, Califórnia.

Como lidar com a ansiedade em torno do coronavírus

Para começar, entenda que você não está só nesta luta e que sentir ansiedade neste momento é absolutamente normal.

“Um pouquinho de ansiedade é uma coisa boa, porque te mantém alerta”, disse Osibodu-Onyali.

“É a maneira que seu corpo tem de te proteger.”

É esse pouquinho de ansiedade que “levará você a lavar as mãos, ficar em casa e ficar preparada”, ela disse.

“Se você não sentisse ansiedade alguma, provavelmente desistiria de respeitar o distanciamento social e se colocaria em risco”, ela prosseguiu. “Diante de uma situação nova e inusitada, é totalmente normal ficarmos em alerta. A ansiedade ocorre em função de todas as incógnitas: não há cura conhecida, não temos como prever quando o distanciamento social vai terminar, não temos experiência anterior com uma pandemia.”

A terapeuta ofereceu algumas sugestões para ajudar as pessoas a lidar com a ansiedade vivida neste período:

Crie um cronograma para você seguir.

De uma hora para outra, milhões de pessoas de repente tiveram que começar a trabalhar de casa, enquanto seus filhos têm aulas à distância. Não passe o dia de pijama. Trace um cronograma para você e sua família e siga-o.

Desligue os jornais por algum tempo.

Muitas pessoas ficam acompanhando as notícias 24 horas por dia. A única coisa que isso faz é intensificar sua ansiedade. Se você passa seu dia pensando na covid, começa a ter a impressão falsa de que essa é a única coisa importante no mundo. Dê uma folga a si mesmo.

Volte sua atenção ao que você pode fazer de concreto.

Há muita coisa que não sabemos neste momento. Mas você pode controlar o tipo de pessoa que pode ser durante tudo isso: uma pessoa que segue as recomendações dos médicos e cientistas, que arranca um sorriso de outras ao postar mensagens positivas nas redes sociais, que mantém contato com seus entes queridos e que estrutura sua vida em casa.

Medidas de prevenção do coronavírus que valem a pena ser tomadas

Enquanto você se esforça para controlar a ansiedade, não se esqueça de também se proteger contra a covid-19, adotando as medidas de saúde necessárias.

A estas alturas você certamente já sabe o que deve estar fazendo para evitar ser contaminado pelo vírus –como lavar as mãos com água e sabonete por pelo menos 20 segundos, não tocar o rosto com as mãos não lavadas e limitar seu contato com outras pessoas, através do distanciamento social. Mas não se esqueça de cuidar bem de você mesmo, também.

Procure se alimentar de modo saudável, recomendou Linda Anegawa, médica da plataforma de telessaúde PlushCare. Durma pelo menos sete horas por noite e, quando puder, especialmente quando o tempo estiver bom, faça caminhadas ao ar livre, respeitando o distanciamento social. Denniston acrescentou que expor-se ao sol, de modo a receber vitamina D, ajuda a nos manter saudáveis.

Se você estiver enfrentando sintomas ligados à covid-19, telefone ao médico ou faça uma consulta telefônica antes de ir ao hospital. Monitore sua temperatura corporal e quaisquer outros problemas que esteja tendo, para poder transmitir essas informações a um profissional.

Mas, segundo Johnson, há alguns casos em que a recomendação é procurar ajuda médica imediatamente.

“Os sintomas indicativos de uma emergência médica, que exigem assistência médica imediata, incluem dificuldade respiratória, confusão, febre alta e mudança no status mental”, ela explicou. “Indivíduos que tenham problemas de saúde anteriores – como diabetes, desordens autoimunes e doenças cardíacas, ou pessoas das faixas etárias de mais alto risco – devem consultar o médico ao primeiro sinal de possível infecção.”

Texto e imagem reproduzidos do site: huffpostbrasil.com

sábado, 18 de abril de 2020

O que Freud diria?

Atendimento psicológico online: ansiedade e questões familiares são hoje os temas mais
abordados (Getty Images)

Publicado originalmente no site da revista EXAME, em 9 de abril de 2020

O que Freud diria?

Com a quarentena, sessões de psicoterapia à distância foram liberadas de vez. É boa solução — mas a migração para o digital exige cuidados

Por Murilo Bomfim

O trabalho, agora, é em casa — e, por incrível que pareça, a carga aumentou. Entre as inúmeras videoconferências, os filhos pedem ajuda nos assuntos da escola, fechada por tempo indeterminado. Com a quarentena, funcionários do lar estão dispensados, e é preciso dar conta da limpeza e da alimentação. Ir à rua dá medo, porque pode ser contaminado, e a preocupação com os pais, já idosos, é constante. Essas são algumas das dificuldades que uma parcela da população tem vivenciado em razão da pandemia da covid-19. E, justamente num momento em que a saúde mental é tão frágil quanto necessária, as consultas com psicólogos e psicanalistas estão suspensas. Pelo menos presencialmente.

Como fazer psicoterapia à distância? O próprio Sigmund Freud, pai da psicanálise, trocava cartas com alguns pacientes.  A saída para manter a sanidade mental é a mesma que temos usado para trabalhar ou falar com amigos: as ferramentas digitais. O uso oficial de plataformas online de comunicação para esse fim é recente. Foi apenas em 2018 que o Conselho Federal de Psicologia publicou uma resolução regulamentando a prática. “Com a medida, a única restrição passou a ser o atendimento em situações emergenciais ou desastres”, diz Ana Sandra Fernandes, presidente do conselho. No fim de março, o conselho publicou uma nova resolução que permite consultas à distância em qualquer situação enquanto durar a pandemia. “O ideal é que, ao fim da crise, a mediação virtual volte a ser uma possibilidade, e não a única ferramenta.”

A migração dos psicólogos e psicanalistas para o ambiente digital é significativa. A Vittude, startup que conecta profissionais a pacientes, viu o número de usuários da plataforma explodir no último mês. Na comparação entre fevereiro e março, o aumento de novos psicólogos inscritos foi de 744%, e o de empresas que procuraram pelo serviço corporativo da startup foi de 300%. “Muita gente está angustiada: funcionários estão relatando crise de pânico, medo da morte, de perder parentes”, diz Tatiana Pimenta, fundadora da Vittude. “As empresas começaram a se preocupar em oferecer suporte e apoio psicológico.”

Fundador da Zenklub, startup que oferece o mesmo serviço, Rui Brandão também percebeu o aumento da demanda por psicoterapia online. “Vivemos um cenário totalmente diferente, em que as pessoas não estão mais apenas interessadas, mas precisando.” Segundo ele, dois temas são especialmente abordados pelos pacientes: a ansiedade e as questões de relacionamento interfamiliar. “O nervosismo com a falta de expectativa e a obsessão com álcool em gel e contaminação estão em primeiro lugar”, diz. “As relações vêm na sequência. Nunca passamos tanto tempo com filhos, cônjuges e pais, o que suscita questões de ordem familiar.”

Para Pimenta, da Vittude, a efetividade do processo terapêutico à distância é alta, tem a vantagem de evitar o deslocamento e não exige muitos preparos do paciente. Ela pondera, no entanto, que há mudanças para os terapeutas. Se, no consultório, a pessoa a ser tratada senta em frente ao psicólogo (ou ao lado, no divã), a psicoterapia virtual reduz a visão que se tem do paciente. “Essa diferença exige mais atenção do profissional à fala do paciente”, diz Pimenta. “Há uma perda da linguagem não verbal, como um bater de perna ou o fato de a pessoa suar.” Essa dificuldade é amenizada à medida que o psicólogo ganha experiência no atendimento virtual.

Popular no YouTube, o psicanalista Christian Dunker enxerga outras questões implicadas na transição para o online, como a diferença no tempo de fala em ambiente virtual, com perguntas e respostas em sequência. “É o que os linguistas chamam de troca de turno: uma pessoa fala e a outra diz algo logo em seguida”, explica. “Isso não é muito positivo para a prática da psicoterapia que envolve a fala livre, ficar em silêncio e tornar o discurso menos retilíneo do ponto narrativo.” Nesse sentido, os possíveis atrasos na comunicação, que ocorrem quando há falhas nas plataformas ou instabilidade na conexão, também podem interferir na qualidade do atendimento.

Dunker reforça que a psicoterapia virtual não é recomendada para casos de risco, pessoas impulsivas ou em estado de vulnerabilidade e crianças. Para ele, pacientes em geral se beneficiam da prática, principalmente os que moram em regiões mais interioranas do Brasil, onde é mais difícil encontrar profissionais para consultas presenciais. “O tratamento psicoterápico começa com uma série de entrevistas preliminares que podem durar semanas. Profissional e paciente estão se escolhendo, e não há obrigação de continuar se não fluiu bem”, diz Dunker. “Nesse tempo de adaptação às plataformas digitais, é preciso ser tolerante: vão acontecer contratempos, e nem sempre sabemos bem o que fazer. É parte da experimentação.”

Texto e imagem reproduzidos do site: exame.abril.com.br

domingo, 16 de dezembro de 2018

A cura pode estar aqui (ou dentro da sua cabeça)

Imagem para simples ilustração, postada pelo blog

Texto publicado originalmente no site da revista Super Interessante, em 31/10/2016

A cura pode estar aqui (ou dentro da sua cabeça)

Um paciente que acredita no tratamento melhora mesmo tomando pílulas de farinha?

Por Maria Fernanda Vomero

Se você perguntar para um grupo de médicos se um deles já teve algum paciente que melhorou de forma surpreendente sem recorrer a remédios ou cirurgias, certamente vai ouvir muitas histórias. Se fizer a mesma pergunta aos amigos, é provável que descubra casos interessantes de gente que sarou sem passar pelo ambulatório. Foi a vizinha que se curou do câncer, o tio que espantou a insônia, o colega que se livrou da artrite. Não se trata de conversa fiada nem de fenômeno sobrenatural. Melhoras ou curas como essas começam a ser vistas pela ciência como provas da participação ativa da mente – ou seja, das emoções, crenças e expectativas – no tratamento de uma doença física. É o efeito placebo.

Placebo é um termo emprestado do latim. Significa “agradar”. Serve para designar a substância inócua usada em experimentos clínicos que testam a eficácia terapêutica de uma nova droga. Nesses experimentos, os pacientes são divididos em dois grupos: o primeiro recebe o novo medicamento e o segundo, que servirá de controle, o placebo. São testes chamados de duplo-cegos, porque nem o paciente nem o médico sabem que indivíduo receberá qual substância – a informação é mantida em sigilo pela equipe coordenadora até o fim da experiência. Ao contrário da droga estudada, o placebo não tem princípio ativo. Pode ser uma pílula de farinha, uma cápsula com açúcar ou uma ampola com soro fisiológico – desde que a semelhança com o remédio de verdade seja perfeita. Teoricamente, não deveria provocar efeito algum. No entanto…

“O índice de melhora do grupo que recebe placebo chega a 40% dos casos, em média”, afirma o psiquiatra Elisaldo Carlini, da Universidade Federal de São Paulo. Isso mostra que até quatro em cada dez pacientes sente alívio de algum sintoma físico somente por tomar um remédio de mentira acreditando que é verdadeiro. Eis o efeito placebo. A vontade de se curar, a crença no médico ou no poder terapêutico da substância trazem benefícios para o doente, desde potencializar a ação de um medicamento até reverter um quadro de dor, por exemplo. “O efeito placebo é real. Trata-se de ciência e não de esoterismo ou magia, como muita gente pensa”, diz o farmacêutico José Carlos Nassute, professor da Universidade Estadual Paulista, em Araraquara.

Casos para comprovar o fenômeno não faltam. “Se a medicina não contar com a crença do paciente em sua própria melhora, nada funciona”, afirma Carlini. Ele se recorda de uma experiência realizada no Hospital São Paulo, na capital paulista, com uma substância que teria propriedades antiepiléticas. Foram selecionados pacientes com epilepsia severa, que, no ano anterior, haviam tido pelo menos uma crise por semana e que não reagiam mais a nenhum medicamento. O estudo seguia o modelo duplo-cego e obteve a aprovação do comitê de ética do hospital.

Entre os que receberam o placebo estava um paciente chamado João. Era um homem humilde e apresentava duas ou três convulsões por semana. Durante os seis meses de acompanhamento, em que recebia uma cápsula com açúcar cristal por semana, João não teve nenhuma crise. “Seria difícil explicar para ele o fim da experiência”, diz Carlini. “Então, durante mais de um ano, continuamos a lhe dar o placebo. Lembro-me de que ele nem sempre tinha dinheiro para pagar a condução. Mas fazia questão de nos trazer uma caixa de bombons sempre que possível, quando vinha buscar as cápsulas.”

Carlini analisa a história de João dentro do contexto do sistema de saúde brasileiro. Em geral, diz ele, os pacientes costumam ser atendidos em ambulatório, enfrentar filas de espera e consultas rápidas, cada vez com um profissional diferente. Quando são selecionados para participar de um estudo, recebem toda a atenção da equipe médica, em horários agendados, e têm o tratamento supervisionado do começo ao fim. “Esse paciente, ao ser tratado dessa maneira, deseja melhorar. Ficar bom é uma forma de agradecer ao médico que o atende com tanta atenção”, diz Carlini. Ele e outros cientistas reconhecem que a gratidão do paciente pode desencadear o efeito placebo, assim como outros fatores presentes na relação com o médico. Um cumprimento mais afetuoso ou mesmo um procedimento complexo, como a cirurgia, também podem induzir uma melhora.

“A intensidade do fenômeno depende tanto da doença que está sendo tratada quanto da natureza do placebo”, diz o psicólogo americano Irving Kirsch, da Universidade de Connecticut, que há 25 anos estuda o assunto. “Placebos apresentados como se fossem remédios de uma marca conhecida provocam mais efeito do que aqueles tidos como genéricos. E injeções de substâncias inócuas são mais efetivas do que as pílulas da mesma substância.” Quanto maior e mais dramático parece ser o procedimento terapêutico, maior o efeito placebo para o paciente.

Um exemplo da influência das expectativas aconteceu no Texas, Estados Unidos. Dez pacientes, com fortes dores no joelho devido a artrite, aguardavam a vez de serem operados pelo cirurgião americano J. Bruce Moseley. Cético sobre os reais benefícios da cirurgia, Moseley resolveu fazer um teste. Conseguiu a aprovação do comitê de ética do hospital e o consentimento dos pacientes. Os dez homens seriam anestesiados e levados para a sala de operações. No entanto, apenas dois deles seriam submetidos à cirurgia completa, que consiste em retirar parte da junta inflamada e lavar a região afetada. Três teriam apenas a área atingida lavada e, nos cinco restantes, seriam feitos apenas três pequenos cortes superficiais no joelho, imitando os normalmente adotados nesse tipo de cirurgia. Seis meses depois, os dez pacientes ainda não sabiam a que tipo de procedimento haviam sido submetidos, mas todos eles sentiram o mesmo grau de diminuição das dores.

O efeito placebo não se restringe aos testes. “Está presente em todo ato terapêutico”, diz o médico Eduardo Baleeiro, da Universidade Federal da Bahia. “Na minha experiência clínica, o fenômeno placebo não aparece como exceção, mas sim como a regra.” Ele conta a história de um homem de 74 anos que estava com câncer de laringe e, por isso, apresentava uma rouquidão constante. Foi submetido a duas sessões de radioterapia, sem sucesso.

Baleeiro e sua equipe, ao ver o tamanho do tumor, optaram por uma cirurgia para a remoção da laringe. Se não fosse operado, acreditavam, o paciente provavelmente morreria em poucos meses. Mas o homem negou-se a passar pela cirurgia pois, sem laringe, não poderia fazer o que mais gostava: nadar diariamente e tocar sua gaita de sopro. (Depois da cirurgia de retirada da laringe, os pacientes passam a respirar por um orifício no pescoço.) Ele procurou, então, seu médico de confiança, que lhe propôs um tratamento sem cirurgia. “O paciente está vivo há mais de cinco anos, graças à sua determinação e à incondicional confiança naquele médico”, afirma.

Mas, tanto nos experimentos quanto no consultório, os médicos encontram também casos de efeito nocebo – o fenômeno inverso ao placebo. “O paciente pode, ao tomar uma substância inócua, sentir os mesmos efeitos colaterais que um remédio causaria”, diz Robert Hahn, especialista em antropologia médica do Centro de Controle de Doenças do governo dos Estados Unidos. “Às vezes, também, as expectativas do paciente quanto ao tratamento são tão negativas que acabam bloqueando ou invertendo a ação do medicamento verdadeiro.”

Auto-sugestão? Os pesquisadores admitem que a mente desempenha um papel fundamental no efeito placebo (e no nocebo também). “Está mais do que provado que as emoções podem desencadear alterações físicas”, diz o farmacêutico José Nassute. Por que o mesmo antibiótico passa a “agir” quando você muda de médico? “Em certas doenças, a fé do paciente na cura pode funcionar por si só”, afirma o cardiologista americano Herbert Benson, fundador do Instituto Médico Mente e Corpo, ligado à Universidade de Harvard. “Em outras, a fé potencializa os efeitos da medicação. Isso quer dizer que a mente participa do tratamento. Mas não substitui os remédios e cirurgias que existem.”

Para a psicóloga Denise Gimenez Ramos, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, o efeito placebo soa como um fenômeno inexplicável porque o ser humano se acostumou a enxergar a capacidade de cura como algo externo a si mesmo. “Projetamos o efeito curador no médico, no remédio, na cirurgia, num objeto mágico, numa imagem sagrada – ou no placebo.”

Denise cita a história do paciente Wright, um americano com câncer em estado avançado, que ficou famoso na medicina pela evidência do poder dos efeitos placebo e nocebo. Doente terminal, Wright apresentava tumores grandes e respirava com a ajuda de tubos de oxigênio. Ele descobriu que o hospital em que estava internado iria realizar testes com uma nova droga, o krebiozen, e pediu para ser incluído no grupo a ser estudado. Apesar de desenganado, estava tão entusiasmado que os médicos não tiveram alternativa senão aceitá-lo nos testes.

Dias depois das primeiras aplicações de krebiozen, Wright deixou o hospital recuperado. Mas isso só durou até os jornais divulgarem pesquisas que questionavam o efeito terapêutico da droga. Wright ficou deprimido. Seus tumores voltaram, ele teve uma recaída fulminante e foi internado novamente, em estado grave. O médico, percebendo o efeito placebo, disse que tinha disponível krebiozen refinado, muito mais eficaz que a versão anterior. Wright recuperou a confiança na cura e, depois das injeções de placebo, recebeu nova alta. Quando o relatório final da Associação Médica Americana foi divulgado, dizendo que a droga de fato não funcionava, Wright retornou ao hospital e, dias depois, morreu.

Pode parecer que o fenômeno não passa de um jogo de emoções. Mas os cientistas apontam algumas explicações fisiológicas para os efeitos placebo e nocebo. Muitos deles apostam no reflexo condicionado. A repetição de um estímulo acaba acostumando o sistema nervoso a responder sempre da mesma maneira. Quem elaborou essa teoria foi o fisiologista russo Ivan Pavlov (1849-1936). Durante meses, ele tocava um sino e, em seguida, alimentava seus cães. Com o tempo, bastava tocar o sino para que os animais começassem a salivar, mesmo que não houvesse ração.

“Mas o condicionamento pavloviano nada tem a ver com expectativas pessoais”, diz o psicólogo Shepard Siegel, da Universidade McMaster, no Canadá, especialista no assunto. Ele cita um caso clássico de pessoas com alergia ao pólen – mesmo quando expostas a flores de plástico desenvolviam uma grave reação alérgica. “A associação entre a imagem da flor e a lembrança do malefício do pólen trazia a mesma reação à visão daquelas flores artificiais.”

Outro interessado em entender a fisiologia do placebo, o italiano Fabrizio Benedetti, da Universidade de Torino, constatou que as nossas expectativas podem evitar ou disparar a sensação de dor. Ou seja, nossa mente teria um poder analgésico, sim. E seria capaz de anestesiar uma parte do corpo e não outra, dependendo da resposta específica ao placebo. Voluntários que passaram um placebo na mão, acreditando ser um gel contra a dor, afirmaram que a sensibilidade das mãos diminuiu, ao contrário da dos pés. “Concluímos que na diminuição da dor provocada pelo placebo há participação das substâncias narcotizantes do nosso próprio cérebro quando fatores cognitivos, como expectativas e crenças, estão envolvidos.”

Mesmo com tantas evidências, há quem coloque em dúvida a existência do fenômeno na maioria dos casos já descritos. Em maio deste ano, dois pesquisadores dinamarqueses publicaram um estudo comparando o efeito placebo com a ausência de tratamento. A conclusão surpreendeu o meio científico. Após analisar 114 pesquisas com quase 7 500 pacientes em 40 diferentes condições, eles concluíram que não há dados suficientemente seguros para afirmar que os doentes melhoram só por acreditar que um falso tratamento é real.

“Constatamos que a porcentagem de melhora atribuída ao efeito placebo não era estatisticamente significativa”, diz o médico Asbjorn Hrobjartsson, da Universidade de Copenhague, na Dinamarca, um dos autores do estudo. “Nos testes com resultados em escala (como melhora da hipertensão, por exemplo), a presença do efeito placebo era modesta e não podia ser diferenciada de um esforço do paciente para agradar o pesquisador.” Além disso, afirma ele, a maioria dos artigos publicados sobre o fenômeno não distingue os efeitos do placebo do curso natural de uma moléstia. Em geral, existe um período na doença em que o indivíduo parece melhorar. “Será que não se atribui erroneamente esse período de melhora ao efeito placebo?”, pergunta Hrobjartsson. Os pesquisadores não têm a resposta.

Falta muito para a ciência entender os mecanismos emocionais e fisiológicos que envolvem o desaparecimento de moléstias no organismo. “Há tratamentos em que não se produz efeito placebo. Em outros, quase 100% dos pacientes melhoram”, diz Irving Kirsch. Ao que tudo indica, há mais coisas entre a doença e a cura do que sonha a nossa biologia.

Texto reproduzido do site: super.abril.com.br