Imagem para simples ilustração, postada pelo blog
Texto publicado originalmente no site da revista Super Interessante, em 31/10/2016
A cura pode estar aqui (ou dentro da sua cabeça)
Um paciente que acredita no tratamento melhora mesmo tomando
pílulas de farinha?
Por Maria Fernanda Vomero
Se você perguntar para um grupo de médicos se um deles já
teve algum paciente que melhorou de forma surpreendente sem recorrer a remédios
ou cirurgias, certamente vai ouvir muitas histórias. Se fizer a mesma pergunta
aos amigos, é provável que descubra casos interessantes de gente que sarou sem
passar pelo ambulatório. Foi a vizinha que se curou do câncer, o tio que
espantou a insônia, o colega que se livrou da artrite. Não se trata de conversa
fiada nem de fenômeno sobrenatural. Melhoras ou curas como essas começam a ser
vistas pela ciência como provas da participação ativa da mente – ou seja, das
emoções, crenças e expectativas – no tratamento de uma doença física. É o
efeito placebo.
Placebo é um termo emprestado do latim. Significa “agradar”.
Serve para designar a substância inócua usada em experimentos clínicos que
testam a eficácia terapêutica de uma nova droga. Nesses experimentos, os
pacientes são divididos em dois grupos: o primeiro recebe o novo medicamento e
o segundo, que servirá de controle, o placebo. São testes chamados de
duplo-cegos, porque nem o paciente nem o médico sabem que indivíduo receberá
qual substância – a informação é mantida em sigilo pela equipe coordenadora até
o fim da experiência. Ao contrário da droga estudada, o placebo não tem
princípio ativo. Pode ser uma pílula de farinha, uma cápsula com açúcar ou uma
ampola com soro fisiológico – desde que a semelhança com o remédio de verdade
seja perfeita. Teoricamente, não deveria provocar efeito algum. No entanto…
“O índice de melhora do grupo que recebe placebo chega a 40%
dos casos, em média”, afirma o psiquiatra Elisaldo Carlini, da Universidade
Federal de São Paulo. Isso mostra que até quatro em cada dez pacientes sente
alívio de algum sintoma físico somente por tomar um remédio de mentira
acreditando que é verdadeiro. Eis o efeito placebo. A vontade de se curar, a
crença no médico ou no poder terapêutico da substância trazem benefícios para o
doente, desde potencializar a ação de um medicamento até reverter um quadro de
dor, por exemplo. “O efeito placebo é real. Trata-se de ciência e não de
esoterismo ou magia, como muita gente pensa”, diz o farmacêutico José Carlos Nassute,
professor da Universidade Estadual Paulista, em Araraquara.
Casos para comprovar o fenômeno não faltam. “Se a medicina
não contar com a crença do paciente em sua própria melhora, nada funciona”,
afirma Carlini. Ele se recorda de uma experiência realizada no Hospital São
Paulo, na capital paulista, com uma substância que teria propriedades
antiepiléticas. Foram selecionados pacientes com epilepsia severa, que, no ano
anterior, haviam tido pelo menos uma crise por semana e que não reagiam mais a
nenhum medicamento. O estudo seguia o modelo duplo-cego e obteve a aprovação do
comitê de ética do hospital.
Entre os que receberam o placebo estava um paciente chamado
João. Era um homem humilde e apresentava duas ou três convulsões por semana.
Durante os seis meses de acompanhamento, em que recebia uma cápsula com açúcar
cristal por semana, João não teve nenhuma crise. “Seria difícil explicar para
ele o fim da experiência”, diz Carlini. “Então, durante mais de um ano,
continuamos a lhe dar o placebo. Lembro-me de que ele nem sempre tinha dinheiro
para pagar a condução. Mas fazia questão de nos trazer uma caixa de bombons
sempre que possível, quando vinha buscar as cápsulas.”
Carlini analisa a história de João dentro do contexto do
sistema de saúde brasileiro. Em geral, diz ele, os pacientes costumam ser
atendidos em ambulatório, enfrentar filas de espera e consultas rápidas, cada
vez com um profissional diferente. Quando são selecionados para participar de
um estudo, recebem toda a atenção da equipe médica, em horários agendados, e
têm o tratamento supervisionado do começo ao fim. “Esse paciente, ao ser
tratado dessa maneira, deseja melhorar. Ficar bom é uma forma de agradecer ao
médico que o atende com tanta atenção”, diz Carlini. Ele e outros cientistas
reconhecem que a gratidão do paciente pode desencadear o efeito placebo, assim
como outros fatores presentes na relação com o médico. Um cumprimento mais
afetuoso ou mesmo um procedimento complexo, como a cirurgia, também podem
induzir uma melhora.
“A intensidade do fenômeno depende tanto da doença que está
sendo tratada quanto da natureza do placebo”, diz o psicólogo americano Irving
Kirsch, da Universidade de Connecticut, que há 25 anos estuda o assunto.
“Placebos apresentados como se fossem remédios de uma marca conhecida provocam
mais efeito do que aqueles tidos como genéricos. E injeções de substâncias
inócuas são mais efetivas do que as pílulas da mesma substância.” Quanto maior
e mais dramático parece ser o procedimento terapêutico, maior o efeito placebo
para o paciente.
Um exemplo da influência das expectativas aconteceu no
Texas, Estados Unidos. Dez pacientes, com fortes dores no joelho devido a
artrite, aguardavam a vez de serem operados pelo cirurgião americano J. Bruce
Moseley. Cético sobre os reais benefícios da cirurgia, Moseley resolveu fazer
um teste. Conseguiu a aprovação do comitê de ética do hospital e o
consentimento dos pacientes. Os dez homens seriam anestesiados e levados para a
sala de operações. No entanto, apenas dois deles seriam submetidos à cirurgia
completa, que consiste em retirar parte da junta inflamada e lavar a região
afetada. Três teriam apenas a área atingida lavada e, nos cinco restantes,
seriam feitos apenas três pequenos cortes superficiais no joelho, imitando os
normalmente adotados nesse tipo de cirurgia. Seis meses depois, os dez pacientes
ainda não sabiam a que tipo de procedimento haviam sido submetidos, mas todos
eles sentiram o mesmo grau de diminuição das dores.
O efeito placebo não se restringe aos testes. “Está presente
em todo ato terapêutico”, diz o médico Eduardo Baleeiro, da Universidade
Federal da Bahia. “Na minha experiência clínica, o fenômeno placebo não aparece
como exceção, mas sim como a regra.” Ele conta a história de um homem de 74
anos que estava com câncer de laringe e, por isso, apresentava uma rouquidão
constante. Foi submetido a duas sessões de radioterapia, sem sucesso.
Baleeiro e sua equipe, ao ver o tamanho do tumor, optaram
por uma cirurgia para a remoção da laringe. Se não fosse operado, acreditavam,
o paciente provavelmente morreria em poucos meses. Mas o homem negou-se a
passar pela cirurgia pois, sem laringe, não poderia fazer o que mais gostava:
nadar diariamente e tocar sua gaita de sopro. (Depois da cirurgia de retirada
da laringe, os pacientes passam a respirar por um orifício no pescoço.) Ele
procurou, então, seu médico de confiança, que lhe propôs um tratamento sem
cirurgia. “O paciente está vivo há mais de cinco anos, graças à sua
determinação e à incondicional confiança naquele médico”, afirma.
Mas, tanto nos experimentos quanto no consultório, os médicos
encontram também casos de efeito nocebo – o fenômeno inverso ao placebo. “O
paciente pode, ao tomar uma substância inócua, sentir os mesmos efeitos
colaterais que um remédio causaria”, diz Robert Hahn, especialista em
antropologia médica do Centro de Controle de Doenças do governo dos Estados
Unidos. “Às vezes, também, as expectativas do paciente quanto ao tratamento são
tão negativas que acabam bloqueando ou invertendo a ação do medicamento
verdadeiro.”
Auto-sugestão? Os pesquisadores admitem que a mente
desempenha um papel fundamental no efeito placebo (e no nocebo também). “Está
mais do que provado que as emoções podem desencadear alterações físicas”, diz o
farmacêutico José Nassute. Por que o mesmo antibiótico passa a “agir” quando
você muda de médico? “Em certas doenças, a fé do paciente na cura pode
funcionar por si só”, afirma o cardiologista americano Herbert Benson, fundador
do Instituto Médico Mente e Corpo, ligado à Universidade de Harvard. “Em
outras, a fé potencializa os efeitos da medicação. Isso quer dizer que a mente
participa do tratamento. Mas não substitui os remédios e cirurgias que
existem.”
Para a psicóloga Denise Gimenez Ramos, da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, o efeito placebo soa como um fenômeno
inexplicável porque o ser humano se acostumou a enxergar a capacidade de cura
como algo externo a si mesmo. “Projetamos o efeito curador no médico, no
remédio, na cirurgia, num objeto mágico, numa imagem sagrada – ou no placebo.”
Denise cita a história do paciente Wright, um americano com
câncer em estado avançado, que ficou famoso na medicina pela evidência do poder
dos efeitos placebo e nocebo. Doente terminal, Wright apresentava tumores
grandes e respirava com a ajuda de tubos de oxigênio. Ele descobriu que o hospital
em que estava internado iria realizar testes com uma nova droga, o krebiozen, e
pediu para ser incluído no grupo a ser estudado. Apesar de desenganado, estava
tão entusiasmado que os médicos não tiveram alternativa senão aceitá-lo nos
testes.
Dias depois das primeiras aplicações de krebiozen, Wright
deixou o hospital recuperado. Mas isso só durou até os jornais divulgarem
pesquisas que questionavam o efeito terapêutico da droga. Wright ficou
deprimido. Seus tumores voltaram, ele teve uma recaída fulminante e foi
internado novamente, em estado grave. O médico, percebendo o efeito placebo,
disse que tinha disponível krebiozen refinado, muito mais eficaz que a versão
anterior. Wright recuperou a confiança na cura e, depois das injeções de
placebo, recebeu nova alta. Quando o relatório final da Associação Médica
Americana foi divulgado, dizendo que a droga de fato não funcionava, Wright
retornou ao hospital e, dias depois, morreu.
Pode parecer que o fenômeno não passa de um jogo de emoções.
Mas os cientistas apontam algumas explicações fisiológicas para os efeitos
placebo e nocebo. Muitos deles apostam no reflexo condicionado. A repetição de
um estímulo acaba acostumando o sistema nervoso a responder sempre da mesma
maneira. Quem elaborou essa teoria foi o fisiologista russo Ivan Pavlov
(1849-1936). Durante meses, ele tocava um sino e, em seguida, alimentava seus
cães. Com o tempo, bastava tocar o sino para que os animais começassem a
salivar, mesmo que não houvesse ração.
“Mas o condicionamento pavloviano nada tem a ver com
expectativas pessoais”, diz o psicólogo Shepard Siegel, da Universidade
McMaster, no Canadá, especialista no assunto. Ele cita um caso clássico de
pessoas com alergia ao pólen – mesmo quando expostas a flores de plástico
desenvolviam uma grave reação alérgica. “A associação entre a imagem da flor e
a lembrança do malefício do pólen trazia a mesma reação à visão daquelas flores
artificiais.”
Outro interessado em entender a fisiologia do placebo, o
italiano Fabrizio Benedetti, da Universidade de Torino, constatou que as nossas
expectativas podem evitar ou disparar a sensação de dor. Ou seja, nossa mente
teria um poder analgésico, sim. E seria capaz de anestesiar uma parte do corpo
e não outra, dependendo da resposta específica ao placebo. Voluntários que
passaram um placebo na mão, acreditando ser um gel contra a dor, afirmaram que
a sensibilidade das mãos diminuiu, ao contrário da dos pés. “Concluímos que na
diminuição da dor provocada pelo placebo há participação das substâncias
narcotizantes do nosso próprio cérebro quando fatores cognitivos, como
expectativas e crenças, estão envolvidos.”
Mesmo com tantas evidências, há quem coloque em dúvida a
existência do fenômeno na maioria dos casos já descritos. Em maio deste ano,
dois pesquisadores dinamarqueses publicaram um estudo comparando o efeito
placebo com a ausência de tratamento. A conclusão surpreendeu o meio
científico. Após analisar 114 pesquisas com quase 7 500 pacientes em 40
diferentes condições, eles concluíram que não há dados suficientemente seguros
para afirmar que os doentes melhoram só por acreditar que um falso tratamento é
real.
“Constatamos que a porcentagem de melhora atribuída ao
efeito placebo não era estatisticamente significativa”, diz o médico Asbjorn
Hrobjartsson, da Universidade de Copenhague, na Dinamarca, um dos autores do
estudo. “Nos testes com resultados em escala (como melhora da hipertensão, por
exemplo), a presença do efeito placebo era modesta e não podia ser diferenciada
de um esforço do paciente para agradar o pesquisador.” Além disso, afirma ele,
a maioria dos artigos publicados sobre o fenômeno não distingue os efeitos do
placebo do curso natural de uma moléstia. Em geral, existe um período na doença
em que o indivíduo parece melhorar. “Será que não se atribui erroneamente esse
período de melhora ao efeito placebo?”, pergunta Hrobjartsson. Os pesquisadores
não têm a resposta.
Falta muito para a ciência entender os mecanismos emocionais
e fisiológicos que envolvem o desaparecimento de moléstias no organismo. “Há
tratamentos em que não se produz efeito placebo. Em outros, quase 100% dos
pacientes melhoram”, diz Irving Kirsch. Ao que tudo indica, há mais coisas entre
a doença e a cura do que sonha a nossa biologia.
Texto reproduzido do site: super.abril.com.br
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