Publicado originalmente no site FRONTEIRAS, em 21 de
setembro de 2015
Contardo Calligaris: "Há uma espécie de necessidade de
convivência que não nos faz bem."
Por Marcos Dias (A Tarde)
Precisa crescer? Precisa ser melhor? Precisa evoluir? Segundo Contardo Calligaris, a necessidade de aprender a conviver com os outros pode ter se tornado mais uma causa para culpas e frustrações, assim como a necessidade de ser feliz, ideal para o qual ele também faz ressalvas.
Em entrevista, Calligaris não questiona apenas a necessidade
de saber conviver, mas a necessidade de se conviver bem, defendendo até que um
certo toque de tensão pode tornar as relações mais interessantes. Concordando
ou não, a fala de Contardo Calligaris busca perturbar e libertar ao mesmo
tempo.
O que mais lhe interessa em relação ao tema da convivência?
Contardo Calligaris: Minha primeira pergunta para mim mesmo
é por que seria bom viver juntos? E a questão talvez mais interessante: de onde
viria de cada um de nós, ou pelo menos de quase todos, inclusive dos que vivem
felizes relativamente sozinhos, a sensação de que seria muito mais certo sermos
capazes de conviver com os outros? Esta seria um pouco a minha pergunta prévia,
ou seja, em termos bem psicanálise dos anos 30, a ideia de que viver juntos é
uma espécie de imperativo superegoico que produz em cada um de nós uma série de
consequências, aliás, não necessariamente das melhores, ou seja, culpas,
inibições, sentimento de fracasso, inadequação e companhia.
Eu acho que a força desse imperativo na nossa sociedade,
sobretudo a partir dos ultimos 40, 50 anos, é extraordinária. Porque além do
seu sentido mais genericamente político, de "aprofundar a convivência
democrática", tudo isso entre aspas, por favor, também do ponto de vista
da convivência cotidiana, a ideia de que a gente deveria estar pelo menos desde
os anos 1970 em uma espécie de aprofundamento contínuo da vida dividida, da
vida a dois, do casal, ou qualquer outro tipo de convivência que seja, esta
ideia está não só completamente presente, mas constantemente mais presente.
Freud disse, num texto de 1930, que "a intenção de que
o homem seja 'feliz' não se acha no plano da 'Criação'". E que o sofrer
nos ameça pela finitude do corpo, pelas catástrofes da natureza e, tanto
quanto, pelas relações com os outros seres humanos. Estamos vivendo um momento particularmente
urgente em relação à convivência?
Contardo Calligaris: Na minha experiência clínica, comparada
com o clima dos anos 70 e 80, por exemplo, e mesmo em alguma medida nos anos
90, acho que a grande dificuldade da maioria das pessoas que me consulta não é
encontrar alguém, usando essa expressão batida, mas a grande dificuldade é se
separar.
O tempo médio que um casal leva para se separar enquanto
ambos vivem uma vida reconhecidamente horrorosa juntos é de três a cinco anos.
Isso não é o tempo do divórcio até a anulação do casamento - o papa Francisco
decidiu que pode acontecer em até 45 dias. O problema é chegar até o pedido!
Isso pode levar de três a cinco anos, o que é engraçado, porque dá a impressão
que as pessoas devem pensar que eles têm uma vida realmente ilimitada,
contrariamente à finitude de que falava Freud.
Em última instância, isso significa que a ideia de que a
convivência ou o fim da convivência seja um fracasso que o sujeito ou sujeitos
não querem encarar é uma ideia justa e é muito forte. Não basta alguém dizer
'eu sou muito infeliz no meu casamento, então seria bom que eu me separasse',
não, o problema não é que vou perder o outro, o problema é que eu vou perder
alguma coisa que vai na direção da realização de um ideal de convivência, que
pelo menos era a minha tentativa de realizá-lo.
Acho que não vivemos um momento particularmente urgente, não
no sentido em que teríamos urgentemente que começar a conviver, mas é urgente
notar que há uma espécie de necessidade de convivência que não nos faz bem.
Há quem diga que o Brasil está dividido ideologicamente. A
política tornou-se uma paixão nacional, no sentido de não haver racionalidade
nesse debate e muito mais agressões?
Contardo Calligaris: Não sei se nesse tipo de debate a
racionalidade alguma vez realmente funcionou, porque o espírito que funciona é
muito mais o espírito da torcida de futebol do que o interesse político. O
espírito da torcida de futebol é que você é do Corinthians e eu sou do
Palmeiras e, a partir disso, discutir os méritos recíprocos, a qualidade dos
jogadores, ou se quem jogou melhor no último jogo e se merecia vencer, é
totalmente impossível.
O que tomou conta e o que toma conta muito frequentemente do
político é, na verdade, um espírito de torcida. Mas isso não é um fenômeno só
brasileiro. Foi um fenômeno norte-americano bastante forte ao longo da gestão
Obama, que a gente chama de uma polarização da vida política. Mas não é tanto
uma polarização de opiniões e posições, é um espírito de torcida.
É engraçado, porque alguém poderia dizer que isso é um
sucesso da convivência, porque a convivência, afinal, não precisa ser
universal; parece que dentro de cada grupo, aparentemente, todo mundo concorda
ao redor dos mesmos "grandes princípios", entre aspas, que geralmente
são miseráveis, mas então aí a convivência estaria se dando muito bem. Aliás,
isso seria instrutivo até para se perguntar se é sempre necessariamente tão bom
conviver, porque os membros da mesma torcida convivem muito bem.
Recentemente, você disse que a falta de interesse pelo mundo
e pelos outros é o que pode acontecer de pior a alguém. Seria uma negação da
convivência?
Contardo Calligaris: É muito facilmente assim que os outros
percebem a posição de alguém que perdeu o interesse pelo mundo e pelos outros,
o que significa também por ele mesmo. Porque alguém realmente deprimido nesse
sentido, aos olhos dos outros é quase agressivo.
A accidia, como era chamada na Idade Média - enfim, a
tristeza, seria na tradução exata -, era um dos pecados capitais, e era
considerado o mais grave por ser um pecado contra Deus, porque significava que
você não apreciava o maior presente de Deus que era a criação. Então, não é
estranho que a gente ache que, quem ao redor de nós se deprime, de alguma forma
está pecando contra nós. O Deus cristão já pensou nisso.
Um dos versos de Chico Buarque, em Estação Derradeira, fala
em "cidadãos inteiramente loucos com carradas de razão". Considera
algum aspecto saudável na depressão?
Contardo Calligaris: Eu acho que a gente tem todo o direito
do mundo de estar triste. Até tem várias pessoas para quem é absolutamente
inevitável ter uma espécie de pano de fundo melancólico sempre na vida. Tem uma
série de razões que vem da infância, da vida de cada um de nós.
Vou dizer isso de maneira metafórica, claro, como se cada um
de nós tivesse uma tonalidade cromática, uma cor que é dele, e há pessoas que
têm uma tonalidade cromática mais triste por mil razões. Sei lá, se a sua mãe
se suicidou quando você tinha seis anos, existe o fato que você tem razão de
pensar que o seu nascimento não foi uma razão suficiente para ela continuar
vivendo. Isso dá uma tonalidade ao mundo, à sua experiência do mundo que é
inalterável, essa vai ser a sua tonalidade. É só um exemplo, poderia dar
outros.
Mas tem pessoas para quem uma certa melancolia, um certo
spleen, como dizem os românticos, é a relação que eles têm com o mundo. É certo
que assim seja e tem certas pessoas que acham que a tristeza é a melhor relação
possível com o mundo. Por exemplo, os poetas românticos. Se você vai falar para
Baudelaire: "Tente ser feliz a cada dia", ele vai te mandar à merda.
Ou Giacomo Leopardi... Para eles, a tristeza é a fonte principal da sua visão
do mundo, da sua inspiração, do que torna o mundo interessante aos olhos deles.
Nós estamos muito mais numa época que faz da alegria uma
espécie de valor, um valor heurístico. Eu tenho dúvida quanto a isso, volto ao
que dizia Freud do começo, até sublinhando, que talvez a gente tenha mais
acesso à verdade do mundo - não digo pela depressão, porque a depressão diz
respeito a ficar parado sem pensar em absolutamente nada, a depressão clínica
-, mas talvez tenha mais acesso à verdade do mundo pelo viés da tristeza do que
pelo viés da alegria, ou sobretudo de uma alegria um pouco maníaca, tipo aquela
coisa, sabe, "vamos lá, sejamos felizes".
Texto e imagem reproduzidos do site: fronteiras.com
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