Publicado originalmente no site Brasil El País, em 19 de setembro de 2016
“Quer calar a boca?”: a importância de desfrutar de duas
horas de silêncio por dia
Nem a melhor canção do mundo iguala o poder da quietude, que
traz benefícios ao coração e ao cérebro
Por Ana G. Moreno
Situada a menos de um quilômetro da Quinta Avenida, em Nova
York, a taberna Burp Castle tem um cartaz que diz: “Proibido gritar. Apenas
sussurros”. O nível das conversas no local não ultrapassa os 39 decibéis (como
um bom aparelho de ar condicionado). No outro extremo do mundo, um especialista
na cerimônia do chá da Escola Urasenke, em Kyoto (Japão), se entrega ao ritual
em total silêncio: “Ninguém fala, ninguém domina”. E no meio da floresta
finlandesa, a jornalista espanhola Marta Caparrós, que ganhou uma bolsa para lá
escrever seu segundo romance, está prestes a fazer algo inédito em sua vida
anterior em Madri: sair para passear por um momento sem colocar os fones de
ouvido.
O silêncio pode parecer um capricho inalcançável. Numa
sociedade de debatedores de televisão gritões, na qual se compete para encher
as casas de telas e a timidez é injustamente associada a temperamentos fracos e
pusilânimes, abaixar o volume não está na moda. E pagamos uma conta muito alta
por isso. “A poluição sonora está relacionada com surdez, problemas de sono,
doenças cardiovasculares e distúrbios digestivos. Sabe-se também que os jovens
que vivem num ambiente ruidoso têm sua capacidade de memória e de aprendizagem
alterada”, afirma Pablo Irimia, neurologista e membro da Sociedade Espanhola de
Neurologia (SEN).
A OMS publicou um relatório em 2011 que revelou que 3.000
das mortes ocorridas naquele ano na Europa Ocidental por doença cardíaca tinham
relação com o ruído excessivo. Na Espanha, 22% da população está em situação de
risco por causa da carga de decibéis (acima de 65 é considerado perigoso), de
acordo com a organização. Já em 1859, a enfermeira britânica Florence
Nightingale escreveu o seguinte em um documento recompilado pelo historiador
Hillel Schwartz em seu livro Making Noise: From Babel to the Big Bang &
Beyond [Fazendo Barulho: de Babel ao Big Bang & Mais Além]: “O ruído
desnecessário é a ausência mais cruel de cuidado que se pode infligir a uma
pessoa. O ruído repentino é inclusive uma causa de morte entre os pacientes
crianças”.
Mas o silêncio tem algum efeito positivo sobre o organismo,
além de garantir a ausência de furadeiras e motores? O médico e pesquisador
Luciano Bernardi foi um dos primeiros a responder afirmativamente a essa
questão, com um estudo publicado na revista Heart. “Estávamos investigando os
efeitos de diferentes tipos de música nos sistemas cardiovascular e
respiratório e introduzimos pausas de dois minutos entre os trechos das
canções. Então vimos que os indicadores de relaxamento humano disparavam
durante esses episódios, muito mais do que com qualquer música ou durante o
silêncio anterior ao início da experiência”. O efeito positivo do silêncio, por
conseguinte, funciona por contraste.
Ruído ruim, silêncio bom?
Segundo o pesquisador e neurologista Michael Wehr, da
Universidade de Oregon, nossos neurônios se acendem durante a quietude, de modo
que o cérebro a está reconhecendo, “não o vive como uma ausência de inputs”. Na
mesma linha raciocina a cardiologista e neurologista Imke Kirste em seu
trabalho Is Silence Golden? [O Silêncio É de Ouro?], publicado em 2013 na
revista Brain Structure and Function. A pesquisa, realizada somente com
camundongos, mostrou que o silêncio, em maior nível do que qualquer melodia, provoca
neurogênese (nascimento de novos neurônios). Se sua diminuição no hipocampo
leva à doença de Alzheimer, como apontam muitos especialistas, o silêncio e o
retiro poderiam ser uma maneira de tratar a doença.
O neurologista Pablo Irimia aconselha, no entanto, muita
prudência a esse respeito (“a partir da adolescência, a neurogênese é tão
limitada que tem pouco valor”), mas aponta duas evidências indiscutíveis: o
silêncio facilita o controle da pressão arterial (reduz o risco cardiovascular,
prevenindo, assim, doenças cardíacas e acidentes vasculares cerebrais) e
predispõe aos benefícios de uma vida reflexiva. “O pensamento profundo e
meditado gera novas conexões entre os neurônios. Ou seja, uma vida intelectual
ativa, que exige concentração e, portanto, silêncio, desempenha um papel
protetor em distúrbios neuronais. Por exemplo, sabemos que um alto nível de
escolaridade está associado a um menor risco de sofrer da doença de Alzheimer”,
diz o neurologista, que aconselha uma rotina pouco barulhenta e pontuada por
momentos de silêncio.
“Não é preciso se isolar completamente. Basta viver uma vida
normal, com especial atenção para a calma. Na verdade, nenhum cérebro humano
aguenta o silêncio total. Existem câmaras anecóicas que reproduzem, no ambiente
médico, o que há de mais parecido ao silêncio absoluto, e ninguém consegue
ficar mais de 40 minutos dentro delas, porque o cérebro está sempre à procura
estímulos e se não os encontra fora, amplia o ruído do coração, dos
intestinos”, continua o cientista.
Viagem ao país onde ninguém grita
Silêncio é ler, pensar com frequência, não se deixar levar,
parar caso necessário. Mas o silêncio também é ouvir (quando se faz para
aprender) e colocar na linha de fogo a reflexão silenciosa. “O zen vai por aí.
Sentir essa calma em todo o seu corpo e experimentá-la a cada dia”, ilustra o
monge Roshi Gensho Hozumi, do templo Tekishinjuku (Japão), no documentário In
Pursuit of Silence [Na Busca do Silêncio] (Patrick Shen, 2015). O filme como o
estudante norte-americano Greg Hindy cruza os EUA em voto de silêncio, de
Nashua a Los Angeles, sobressaltado pelo ritmo demoníaco que os avanços
tecnológicos impunham a ele e procurando se conectar “com uma realidade
emudecida”.
O apito constante de um grupo do WhatsApp não é, por acaso,
um ruído? Depende. “O som é um fenômeno físico que atinge o ouvido. Este o
envia para o cérebro e o identifica. Quando se torna ruído? Quando se intromete
naquilo que estou tentando fazer e assume a forma de som desagradável não
desejado”, responde a doutora Arline Bronzaft, psicóloga ambiental, no
documentário norte-americano. Agora, seja sincero: o seu celular emite ruídos
ou sons?
Das nossas decisões cotidianas dependerá que nos
encharquemos, ou não, do poder do silêncio. Gestos como apoiar os avanços no noise
(sim, existem pessoas pesquisando em secadores de cabelo sigilosos), desligar o
smartphone ou escolher onde passar as férias podem ser cruciais. E países como
a Finlândia reivindicam seu espaço nessa tarefa. Em 2010, um punhado de
especialistas em marketing se reuniu num restaurante em Helsinque para pensar
como tornar atraente para os visitantes um país médio e remoto, eclipsado pela
vanguarda de vizinhos como a Suécia ou pela grandeza histórica da Rússia. E
descobriram um elemento que até então ninguém tinha ousado vender como recurso
natural: o silêncio.
O pensamento profundo e meditado gera novas conexões
neuronais. Sabe-se que uma vida intelectual ativa, que exige concentração e,
portanto, silêncio, desempenha um papel protetor em relação ao Alzheimer. Não é
preciso se isolar completamente. Na verdade, nenhum cérebro humano aguenta o
silêncio absoluto. (Pablo Irimia, neurologista e membro da SEN)
Nem a exuberância de suas florestas, a escuridão hipnótica
dos seus lagos, as pequenas saunas que salpicam suas encostas (abertas ao
público... sem nada de roupa, isso sim), o design funcional de suas acolhedoras
casas ou o cheiro de peixe fresco na Praça do Mercado de Helsinque podem
competir com a atração de um país calado, tímido, pensativo, que não por isso é
hostil, mas muito pelo contrário. Noora Vikman, etnomusicóloga da Universidade
da Finlândia, que assessorou o Instituto de Turismo em sua campanha sobre o
silêncio, conta por e-mail desde um retiro silencioso na região da Lapônia:
“Vir para a Finlândia é descobrir pensamentos e sentimentos que não são
audíveis numa vida agitada. Se você quiser conhecer a si mesmo você tem de
estar consigo mesmo, discutir com você mesmo, ser capaz de falar com si mesmo”.
Além disso, em seus arquipélagos quase desertos (sua
população é semelhante à da Comunidade de Madrid, cerca de 6,4 milhões de
pessoas, mas espalhadas numa área 42 vezes maior), com bicicletas destroçadas
encostadas na porta e poucos bares (ou nenhum) nos arredores, a Finlândia
abraça o silêncio no próprio centro da capital, um enclave movimentado de
lojas, com um palco para música ao vivo, onde tocam grupos de rock incapazes de
atravessar com suas guitarras um edifício próximo, a Capela do Silêncio, um
templo não religioso com isolamento acústico, onde se pode prestar homenagem à
ausência de palavras. Depois você pode sair para ouvir os acordes do Iron
Maiden, pois duas horas de silêncio por dia é a recomendação do professor
Michael Wehr para um hipocampo satisfeito. Na Finlândia, você atingirá essa marca
com folga.
Outros lugares com nível de ruído baixo, de acordo com o
guia de viagem Lonely Planet, são o mosteiro Kartause Ittingen (Suíça), a ilha
de Iona (Escócia) ou o parque de Kielder Forest (Reino Unido). Mas lembre-se de
que, talvez pela primeira vez, cientistas e místicos concordam: o silêncio é,
principalmente, uma atitude. Portanto, convém exercê-la com inteligência. Como
escreveu o poeta e ativista americano Paul Goodman, nem todas as suas formas
acrescentam. “Se existe o silêncio fértil da consciência, daquele que ouve e
compreende quem lhe fala ou o da viva percepção alerta, também existe um tolo e
apático, e outro de cheio de censura e ressentimento que vocifera sem palavras
e não se atreve a abrir a boca”. Fique longe deles.
Texto e imagem reproduzidos do site: brasil.elpais.com
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