A última longa entrevista de Sigmund Freud
Por Carlos Willian Leite.
Sigmund Freud (1856-1939), o judeu austríaco fundador da
psicanálise, formou-se em medicina em Viena. Aperfeiçoou seus estudos em Paris,
com Jean-Marie Charcot, que usava a hipnose como tratamento para a histeria. Ao
romper com Charcot e com a prática da hipnose, Freud se deparou com o mecanismo
de defesa dos pacientes e pode então desenvolver a teoria do inconsciente e sua
própria técnica terapêutica, baseada na livre associação de ideias. Para o
médico austríaco, a neurose adulta era resultado da sexualidade infantil. Em
1900, Freud publicou “A Interpretação dos Sonhos”, seu primeiro trabalho
revolucionário — obra que ele havia terminado anos antes mas que guardou para
lançá-la no despertar de um novo século. Ele tinha razão ao adiá-lo: o século
20 foi o tempo de Sigmund Freud. Em 1938, quando os nazistas anexaram a
Áustria, depois de terem banido a psicanálise da Alemanha, Freud imigrou para a
Inglaterra em companhia de sua Anna, que se tornaria conhecida como psicóloga
infantil. Freud morreu de câncer na garganta.
Entrevista conduzida por George Sylvester Viereck, publicada
no seu livro: “Glimpses of the Great”, publicado em 1930, e republicada no
livro: “A Arte da Entrevista: Uma Antologia de 1823 aos Nossos Dias,”
organizado por Fábio Altman (Scritta 1995).
“Setenta anos de idade me ensinaram a aceitar a vida com
alegre humildade.”
Quem fazia essa declaração era o professor Sigmund Freud, o
grande explorador austríaco do lado oculto da alma. Assim como o trágico herói
grego Édipo, cujo nome está tão intimamente ligado aos princípios fundamentais
da psicanálise, Freud confrontou a Esfinge sem receio. Como Édipo, ele decifrou
o enigma. Pelo menos, nenhum mortal chegou tão perto dos segredos do
comportamento humano quanto Freud.
Freud é para a psicologia o que Galileu foi para a
astronomia. É o Cristóvão Colombo do inconsciente. Ele abre novas perspectivas,
sonda novas profundezas. Freud alterou todas as relações na vida, decifrando o
sentido oculto das regras do inconsciente. Conversamos na casa de veraneio de
Freud em Semmering, uma montanha nos Alpes Austríacos, onde os vienenses
elegantes adoram se reunir. A última vez que vira o pai da psicanálise, ele
estava em sua casa simples na capital austríaca. Os poucos anos que separavam a
minha última visita desta de agora multiplicaram as rugas na sua testa e
aumentaram a sua palidez acadêmica. Seu rosto estava abatido, sofrido. A mente
estava ativa, o espírito firme, a cortesia impecável como sempre, mas uma leve
problema de fala me preocupou.
Parece que uma doença maligna no maxilar superior
necessitara de uma operação. Desde então, Freud usa um aparelho mecânico para
facilitar a fala. Na verdade, não há diferença entre o uso desse aparelho ou de
óculos. Ele deixa Freud mais constrangido do que os visitantes. Depois que
conversamos com ele por algum tempo, o aparelho se torna quase imperceptível.
Nos dias em que Freud está bem, nem se percebe a presença dele. Mas para Freud,
ele é causa de constante irritação.
Sigmund Freud — Eu detesto o meu maxilar mecânico porque a
luta com o mecanismo consome uma força preciosa. Mas é melhor ter um maxilar
mecânico do que nenhum. Ainda prefiro viver a morrer. Talvez os deuses sejam
generosos conosco, tornando a vida mais desagradável à medida em que
envelhecemos. No final, a morte parece mais tolerável do que os muitos
problemas que temos que enfrentar.
(Freud se recusa a admitir que o destino tenha sido
rancoroso com ele.)
Sigmund Freud — Por que, eu devia esperar por algum tipo de
privilégio? A idade, com seus visíveis desconfortos, chega para todos. Ela
atinge um homem aqui, outro lá. O seu golpe sempre atinge uma parte vital.
Sigmund Freud — Não me revolto contra a ordem universal,
afinal vivi mais de setenta anos. Eu tive o que comer. Desfrutei de muitas
coisas — do companheirismo da minha esposa, dos meus filhos, do pôr-do-sol. Eu
vi as plantas crescerem na primavera. Algumas vezes recebi um aperto de mão
amigo. Uma ou duas vezes encontrei um ser humano que quase me entendeu. O que
mais eu posso querer?
George Sylvester Viereck — O senhor é famoso. O seu trabalho
influencia a literatura de todo o mundo. O homem olha para si e para a vida com
olhos diferentes por sua causa. E, há pouco tempo, quando o senhor fez 70 anos,
o mundo se uniu para homenageá-lo — com exceção da sua própria universidade!
Sigmund Freud — Se a Universidade de Viena me aceitasse, eu
teria me sentido muito constrangido. Não há razão para eles me aceitarem ou à
minha doutrina porque eu estou com 70 anos. Não dou nenhuma importância ilógica
aos números. A fama só chega quando já estamos mortos, e, para ser franco, o
que acontece depois da morte não me interessa. Não aspiro à glória póstuma. A
minha modéstia não é nenhuma virtude.
George Sylvester Viereck — O fato do seu nome ser lembrado
não significa nada para o senhor?
Sigmund Freud — Absolutamente nada, mesmo que ele seja
realmente lembrado, o que não é certo. Eu estou mais interessado no destino dos
meus filhos. Espero que a vida deles não seja tão difícil. Não posso torná-las
muito mais fácil. A guerra praticamente acabou com a minha modesta fortuna, as
economias de uma vida inteira. Entretanto, felizmente, a idade não pesa tanto
para mim. Eu ainda sou capaz de seguir em frente! Meu trabalho ainda me dá
prazer.
Sigmund Freud — Estou muito mais interessado nestas flores
do que no que possa acontecer comigo depois que eu morrer.
George Sylvester Viereck — Então, no fundo, o senhor é um
pessimista?
Sigmund Freud — Não, não sou. Só que eu não permito que
nenhuma reflexão filosófica me tire a alegria das coisas simples da vida.
George Sylvester Viereck — O senhor acredita na continuidade
do ser após a morte, seja lá de que maneira for?
Sigmund Freud — Eu não penso nesse assunto. Tudo o que
nasce, um dia morre. Por que então eu também não morreria?
George Sylvester Viereck — O senhor gostaria de retornar à
vida, assumindo uma nova forma? Em outras palavras, o senhor não gostaria de
ser imortal?
Sigmund Freud — Para ser franco, não. Quem identifica as
razões egoístas que se escondem sob o comportamento humano não tem a menor
vontade de voltar. A vida, movendo-se em círculos, ainda seria a mesma. Além
disso, mesmo que o eterno retorno de todas as coisas, como disse Nietzsche, nos
vestisse com novas roupas, que utilidade isso poderia ter sem a memória? Não
haveria ligação entre o passado e o futuro. No que me diz respeito, estou muito
satisfeito em saber que o eterno absurdo de viver terminará um dia. Nossa vida
se resume a uma série de obrigações, uma luta sem fim entre o ego e o seu
ambiente. O desejo de um prolongamento excessivo da vida me parece absurdo.
George Sylvester Viereck — O senhor não aprova as tentativas
do seu colega Steinach de prolongar o ciclo da existência humana?
Sigmund Freud — Steinach não faz nenhuma tentativa para
prolongar a vida. Ele simplesmente luta contra a velhice. Ao aumentar a reserva
de forças que temos dentro de nós, ele ajuda o corpo a resistir à doença. A
operação de Steinach às vezes detém os acidentes biológicos, como o câncer, nos
seus primeiros estágios. Ela toma a vida mais tolerável. Mas não a torna mais
feliz. Não há razão para que o homem queira viver mais. Mas temos todas as
razões para querer viver com o mínimo de desconforto possível. Sou bastante
feliz, porque não sinto dores e sou grato aos pequenos prazeres da vida, aos
meus filhos e às minhas flores!
George Sylvester Viereck — Bernard Shaw diz que vivemos
muito pouco. Ele acha que, se quiser, o homem pode prolongar o tempo de vida
humana, se a força de vontade suplantar as forças da evolução. A humanidade,
segundo ele, pode recuperar a longevidade dos patriarcas.
Sigmund Freud — É possível que a morte em si não seja uma
necessidade biológica. Talvez os homens morram porque queiram morrer. Assim
como o amor e o ódio pela mesma pessoa coexistem dentro de nós, a vida é uma
mistura do desejo de viver com o desejo ambivalente de morrer. Da mesma forma
que um elástico tende a voltar ao seu formato original, toda matéria viva,
consciente ou inconscientemente, anseia pela inércia completa e absoluta da
existência inorgânica. Os desejos de morrer e de viver convivem lado a lado
dentro de nós. A Morte é a companheira do Amor. Juntos, eles governam o mundo.
Essa é a mensagem do meu livro, Além do princípio do prazer. No início, a
psicanálise achava que o Amor era o sentimento mais importante. Hoje, sabemos
que a Morte tem a mesma importância. Biologicamente, todo ser humano, não
importando a intensidade do seu desejo de viver, anseia pelo Nirvana, pela fim
da febre chamada vida, pelo seio de Abraão. O desejo pode ser disfarçado por
rodeios. Entretanto o objetivo final da vida é a própria extinção!
George Sylvester Viereck — Essa, exclamei, é a filosofia da
autodestruição. Ela justifica o automassacre. Levaria à conclusão lógica do
suicídio mundial previsto por Eduard von Hartmann.
Sigmund Freud — A humanidade não escolhe o suicídio, porque
as leis da sua natureza não aceitam o caminho direto para a própria meta. A
vida deve completar o seu ciclo de existência. Em qualquer ser humano normal, o
desejo de viver é o bastante para compensar o desejo de morrer, embora, no
final, o desejo de morrer prove ser mais forte. Nós podemos considerar a ideia
de que a morte nos chega por vontade própria. É possível que derrotássemos a
morte, não fosse pelo aliado que ela tem dentro de nós mesmos. Nesse sentido,
talvez seja certo dizer que toda morte é um suicídio disfarçado.
George Sylvester Viereck — Em que o senhor está trabalhando?
Sigmund Freud — Estou escrevendo uma defesa da análise
leiga, a psicanálise praticada por leigos. Os médicos querem tornar ilegal a
análise feita pelos que não são médicos registrados. A história, essa velha
plagiadora, se repete a cada nova descoberta. Os médicos, a princípio, combatem
qualquer nova verdade. Depois eles tentam monopolizá-la.
George Sylvester Viereck — O senhor teve um grande apoio dos
leigos?
Sigmund Freud — Alguns dos meus melhores alunos são leigos.
George Sylvester Viereck — O senhor pratica a psicanálise
com muita frequência?
Sigmund Freud — Claro. Nesse exato momento, eu estou
trabalhando em um caso difícil, esclarecendo os conflitos psíquicos de mais um
paciente interessante. Minha filha também é uma psicanalista, como o senhor
pode ver…
(Nesse momento, a senhorita Anua Freud surgiu seguida por
seu paciente, um rapaz de 11 anos, de feições obviamente anglo-saxônicas. O
menino parecia muito feliz, esquecido do conflito da própria personalidade.)
George Sylvester Viereck — O senhor se autoanalisa?
Sigmund Freud — É claro. O psicanalista deve se autoanalisar
com frequência. Ao nos analisarmos, nos tornamos mais capazes de analisar
outras pessoas. O psicanalista é como o bode expiatório dos hebreus. As pessoas
colocam a culpa dos seus pecados nele. Ele deve exercer a sua arte com
perfeição para se livrar do peso colocado sobre ele.
George Sylvester Viereck — Sempre me pareceu que a
psicanálise desperta em todos aqueles que a praticam o espírito da caridade
cristã. Não há nada na vida humana que a psicanálise não nos permita entender.
Sigmund Freud — Pelo contrário — (enfureceu-se Freud, as
feições assumindo a severidade arrebatada de um profeta hebreu) — entender não
é perdoar. A psicanálise não apenas nos ensina o que temos que suportar, ela
também ensina o que temos que evitar. Ela nos diz o que deve ser eliminado. A
tolerância do mal não é, de maneira nenhuma, uma consequência do conhecimento.
(De repente eu entendi por que Freud brigara tão seriamente
com os seguidores que o abandonaram, por que ele não consegue perdoar aqueles
que se afastaram do caminho da psicanálise ortodoxa. O seu senso de integridade
é uma herança dos seus ancestrais. Uma herança da qual ele se orgulha, assim
como se orgulha da própria raça.)
Sigmund Freud — Minha língua é o alemão. Minha cultura,
minhas conquistas são alemãs. Considerei-me um alemão do ponto de vista
intelectual, até que percebi o crescimento do antissemitismo na Alemanha e na
Áustria alemã. Desde então, não me considero mais um alemão. Prefiro me
considerar um judeu.
George Sylvester Viereck — Estou feliz Professor, que o
senhor também tenha os seus complexos, que o senhor também exponha a sua
mortalidade.
Sigmund Freud — Os nossos complexos são a fonte da nossa
fraqueza e, com frequência, também da nossa força.
George Sylvester Viereck — Quais seriam os meus complexos?
Sigmund Freud — Uma análise séria levaria, pelo menos, um
ano. Talvez demorasse até mesmo uns dois ou três anos. O senhor tem dedicado
muitos anos da sua vida à caça de leões. O senhor tem procurado, ano após ano,
as grandes personalidades da sua geração, invariavelmente homens mais velhos.
George Sylvester Viereck — Isso é parte do meu trabalho.
Sigmund Freud — Mas também é uma preferência. O homem
importante é um símbolo. A sua busca é afetiva. O senhor está à procura do
homem importante que irá tomar o lugar do seu pai. Isso é parte do complexo que
o senhor tem em relação ao seu pai.
(Neguei a afirmação de Freud com veemência. Entretanto, após
refletir, parece-me que pode haver alguma verdade, insuspeita para mim, na sua
sugestão casual. Talvez seja o mesmo impulso que me levou a ele.)
George Sylvester Viereck — No seu trabalho “O Judeu
Errante”, o senhor estende essa busca ao passado. O senhor é o eterno
Explorador do Homem. Eu queria poder ficar aqui durante o tempo que fosse
necessário para ver o meu interior através dos seus olhos. Talvez, como a
Medusa, eu morresse de medo ao ver minha própria imagem! Entretanto acho que
conheço bastante a psicanálise. Eu iria prever, ou tentar prever, as suas
intenções.
Sigmund Freud — A inteligência de um paciente não é um
empecilho. Pelo contrário, às vezes, ela facilita o trabalho.
(Nesse aspecto, o mestre da psicanálise difere de muitos dos
seus adeptos, que se ressentem de qualquer dedução feita pelos próprios
pacientes sob os cuidados deles. A maioria dos psicanalistas emprega o método
da “livre associação” de Freud. Eles encorajam o paciente a dizer qualquer
coisa que lhes venha à cabeça, não importando o quanto o que dizem possa ser
idiota, obsceno, inoportuno ou irrelevante. Seguindo pistas que parecem não ter
importância, encontram os dragões psíquicos que assustam o paciente,
afugentando-os. Eles não apreciam o desejo de cooperação ativa do paciente,
pois têm medo que, quando descoberta a direção da sua investigação, os desejos
e a resistência do paciente lutem inconscientemente para manter seus segredos,
desviando o caçador psíquico da sua pista. Freud também reconhece esse perigo.)
George Sylvester Viereck — Às vezes eu penso se nós não
seríamos mais felizes se conhecêssemos menos o processo que forma os nossos
pensamentos e emoções. A psicanálise tira o encantamento da vida, quando segue
a pista de cada um dos sentimentos até os seus complexos básicos. Não ficamos
mais felizes ao descobrir nosso lado selvagem, criminoso e animal.
Sigmund Freud — O que o senhor tem contra os animais? A
comunidade animal é infinitamente melhor do que a humana.
George Sylvester Viereck — Porquê?
Sigmund Freud — Porque os animais são muito mais simples.
Eles não sofrem de personalidade dividida ou desintegração do ego, problemas
que surgem da tentativa do homem de se adaptar a padrões de civilização que são
sofisticados demais para o seu mecanismo intelectual e psíquico. O selvagem,
assim como o animal, é cruel, mas ele não tem a maldade do homem civilizado. A
maldade é a vingança do homem contra a sociedade pelas restrições impostas a
ele. É essa vingança que dá vida ao reformista profissional e às pessoas
intrometidas. O selvagem pode cortar a sua cabeça, comê-lo, torturá-lo. Mas ele
vai poupá-lo das pequenas provocações que, às vezes, tornam a vida em uma
comunidade civilizada quase intolerável. Os hábitos e as idiossincrasias mais
desagradáveis do homem, como a trapaça, a covardia e a falta de respeito, são produzidos
pela sua adaptação incompleta a uma civilização complicada. É o resultado do
conflito entre os nossos instintos e a nossa cultura. As emoções intensas,
diretas e simples de um cachorro, ao abanar o rabo ou latir quando é
contrariado, são muito mais agradáveis! As emoções de um cachorro me fazem
lembrar um dos heróis da antiguidade. Talvez seja por isso que nós
inconscientemente damos aos cães nomes de heróis da antiguidade como Aquiles ou
Heitor.
George Sylvester Viereck — Até mesmo o senhor, professor,
acha a existência muito complexa. No entanto, me parece que o senhor mesmo é,
em parte, responsável pela complexidade da civilização moderna. Antes que o
senhor inventasse a psicanálise ninguém sabia que a personalidade era dominada
por um exército beligerante de complexos bastante censuráveis. A psicanálise
fez da vida um complicado quebra-cabeça.
Sigmund Freud — De jeito nenhum. A psicanálise simplifica a
vida. Nós atingimos uma nova síntese depois da análise. A psicanálise cria uma
nova ordem para o labirinto onde estão perdidos certos impulsos, e tenta
conduzi-los para o lugar ao qual pertencem. Ou, usando outra metáfora, ela é o
fio que conduz o homem para fora do labirinto do seu próprio inconsciente.
George Sylvester Viereck — Em uma visão superficial, parece,
entretanto, que a vida humana nunca foi tão complexa. E, a cada dia, alguma
nova ideia, apresentada pelo senhor ou por um dos seus discípulos, torna o
problema do comportamento humano mais enigmático e contraditório.
Sigmund Freud — Pelo menos a psicanálise nunca fecha as
portas para uma nova verdade.
George Sylvester Viereck — Alguns dos seus alunos, mais
ortodoxos do que o senhor, se agarram a qualquer declaração que o senhor faça.
Sigmund Freud — A vida muda e a psicanálise também. Estamos
só no princípio de uma nova ciência.
George Sylvester Viereck — Eu acho a estrutura científica
que o senhor criou muito complexa. E os elementos dessa estrutura, como a
teoria da substituição, da sexualidade infantil, do simbolismo dos sonhos,
etc., parecem permanentes.
Sigmund Freud — No entanto, torno a dizer, nós só estamos
começando. Sou apenas um principiante. Consegui trazer à tona muito do que
estava enterrado nas camadas mais profundas da mente. Mas, enquanto eu só
descobri alguns templos, outros podem descobrir um continente.
George Sylvester Viereck — O senhor ainda dá grande
importância ao sexo?
Sigmund Freud — Eu respondo com as palavras do grande poeta
Walt Whitman: “Mas não haveria nada, se não houvesse o sexo”. Entretanto, como
já disse, hoje em dia, eu dou a mesma importância ao que está além do prazer —
a morte, a negação da vida. Esse desejo explica porque alguns homens gostam da
dor — ela representa um passo em direção à morte! O desejo da morte explica por
que todos os homens procuram o descanso eterno, por que os poetas agradecem:
“Onde quer que os deuses estejam,
Não há vida que viva para sempre
Os homens mortos nunca renascem,
E até o rio mais enfastiado
Segue confiante na direção do mar”.
George Sylvester Viereck — Shaw, como o senhor, não deseja
viver para sempre, mas ele acha o sexo desinteressante.
Sigmund Freud — Shaw (respondeu Freud, sorrindo), não
entende o sexo. Ele não faz a mais remota ideia do que seja o amor. Não existe
nenhum relacionamento amoroso real nas suas peças. Ele transforma o caso de
amor de César — talvez a maior paixão da história — em uma piada.
Deliberadamente, para não dizer maliciosamente, ele despe Cleópatra de todo o
seu esplendor e a rebaixa à condição de uma mulher insignificante, petulante e
exagerada. A razão para a estranha atitude de Shaw em relação ao amor e para a
sua negação do impulso primordial de todas as ações humanas, o que tira de suas
peças o atrativo universal apesar da sua grande inteligência, está na natureza
da sua psicologia. Em um de seus prefácios, Shaw enfatiza o aspecto ascético da
sua personalidade. Posso ter cometido muitos erros, mas tenho certeza que não
errei ao enfatizar a predominância do instinto sexual. Porque o instinto sexual
é tão forte que se choca com muita frequência contra as convenções e
salvaguardas da civilização. A humanidade, em defesa própria, procura negar a
importância suprema do sexo. Analise qualquer emoção humana, não importa o
quanto ela esteja distante da esfera do sexo, e o senhor vai encontrar com
certeza, em algum lugar, o impulso primordial, ao qual a própria vida deve a
sua perpetuação.
George Sylvester Viereck — É certo que o senhor conseguiu
incutir o seu ponto de vista sobre todos os escritores modernos. A psicanálise
deu nova força à literatura.
Sigmund Freud — Ela também recebeu contribuições da
literatura e da filosofia. Nietzsche foi um dos primeiros psicanalistas. É
incrível o quanto a intuição dele se antecipou às nossas descobertas. Ninguém
identificou com mais clareza as razões para o comportamento humano e a luta do
princípio do prazer pelo eterno domínio. O seu Zaratustra diz:
“Desgraça
Grite: Vá
Mas o prazer implora por eternidade,
Implora insaciável, profunda eternidade”.
Pode ser que a psicanálise seja menos discutida na Áustria e
na Alemanha do que nos Estados Unidos, mas a sua influência sobre a literatura,
no entanto, é enorme. Thomas Mann e Hugo von Hofmansthal nos devem muito.
Schnitzler acompanha, em grande parte, o meu desenvolvimento. Ele expressa
através da poesia muito do que eu tento transmitir cientificamente. Mas o
doutor Schnitzler não é apenas um poeta, ele é também um cientista.
George Sylvester Viereck — O senhor não é apenas um
cientista, é também um poeta. A literatura americana está impregnada pela
psicanálise. Rupert Hughes, Harvey O’Higgins e outros são seus intérpretes. É
quase impossível abrir um novo romance recente sem encontrar alguma referência
a psicanálise. Entre os dramaturgos, Eugene O’Neill e Sydney Howard devem muito
ao senhor. “The Silver Cord” (O Cordão de Prata), por exemplo, é uma mera
dramatização do complexo de Édipo.
Sigmund Freud — Eu sei disso, sou grato pelo reconhecimento,
mas temo pela minha própria popularidade nos Estados Unidos. O interesse dos
americanos pela psicanálise não é muito profundo. A grande popularidade leva à
aceitação superficial sem uma pesquisa séria. As pessoas apenas repetem o que
escutam no teatro ou leem nos jornais. Eles pensam que compreendem a psicanálise,
porque conseguem repetir o nosso jargão! Eu prefiro o estudo mais intenso da
psicanálise nos centros europeus. Os Estados Unidos foram o primeiro país a me
reconhecer oficialmente. A Clark University me conferiu um grau honorário
quando eu ainda estava condenado ao ostracismo na Europa. No entanto os Estados
Unidos contribuíram muito pouco para o estudo da psicanálise. Os americanos são
generalizadores inteligentes, mas raramente são pensadores criativos. Além
disso, os médicos americanos, bem como os austríacos, tentam apropriar-se do
campo. Deixar que a psicanálise permaneça somente nas mãos dos médicos será
fatal para o seu desenvolvimento A formação médica pode ser tanto uma vantagem
quanto uma desvantagem para o psicanalista. Ela é uma desvantagem quando certas
convenções científicas aceitas se tornam arraigadas demais na mente do
estudante.
(Freud precisa dizer a verdade a todo custo! Não consegue se
forçar a lisonjear os Estados Unidos, onde tem a maioria dos seus admiradores.
Não consegue, mesmo estando em desvantagem, fazer as pazes com a profissão
médica, que até hoje o aceita com grande relutância. Apesar da sua integridade
inflexível, Freud é muito cortês. Ele ouve qualquer sugestão com paciência, sem
jamais tentar intimidar o entrevistador. É raro um convidado partir sem algum
presente, uma lembrança da sua hospitalidade! A noite chegara. Estava na hora
de pegar o trem de volta para a cidade que um dia abrigara o esplendor imperial
dos Habsburgos. Freud, acompanhado pela esposa e pela filha, subiu a escada que
ligava o seu retiro nas montanhas à rua, para se despedir de mim. Ele me
pareceu triste e sombrio, quando acenou para mim.)
Sigmund Freud — Não me faça parecer um pessimista —
(comentou depois do último aperto de mão) — Eu não desprezo o mundo. Expressar
insatisfação para com o mundo é só uma outra maneira de cortejá-lo, para
conseguir plateia e aplausos! Eu não sou um pessimista, não enquanto tiver meus
filhos, minha mulher e minhas flores! As flores felizmente não têm
personalidade ou complexidades. Adoro as minhas flores. E não sou infeliz —
pelo menos, não mais do que outras pessoas.
(O apito do meu trem soou na noite. O carro me levou à
estação com rapidez. Aos poucos, a figura levemente curvada e a cabeça grisalha
de Sigmund Freud desapareceram ao longe. Como Édipo, Freud olhou fundo nos
olhos da Esfinge. O monstro propõe seu enigma para qualquer viajante. O
andarilho que não souber a resposta será cruelmente agarrado e atirado contra
as rochas. Mesmo assim, ela talvez seja mais gentil com aqueles que destrói do
que com os que adivinham seu segredo.)
Texto e imagem reproduzidos do site: revistabula.com
Nenhum comentário:
Postar um comentário